São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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Unilateralismo põe em risco interesses americanos

DA REDAÇÃO

A atual política externa dos EUA, eminentemente unilateralista -sobretudo após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001-, deverá colocar em risco os interesses americanos em todo o mundo a médio e longo prazos, de acordo com especialistas consultados pela Folha.
A razão é relativamente simples, segundo Charles Tilly, autor de "From Contention to Democracy" (da contenção à democracia). "Se continuar a concentrar-se apenas em ganhar mercados e em atividades militares para combater o que classificou de terrorismo internacional, Washington minará seus interesses porque provocará reações internacionais contrárias à sua política, além de causar o empobrecimento de partes significativas do planeta."
Para o economista Jeffrey Sachs, diretor do Instituto Terra da Universidade Columbia (EUA), isso ocorrerá porque uma parte significativa do sucesso americano advém da globalização, que não vem sendo "bem tratada pelos EUA".
"Um mercado internacional mais abrangente proporcionaria enormes benefícios aos Estados que estivessem em condições de criar e de comercializar novas tecnologias. Ora, como possuem a economia mais inovadora do mundo, os EUA seriam os grandes beneficiados", analisou Sachs.
"Ademais, a segurança dos EUA é reforçada pelo sucesso da globalização. Prova disso foi o efeito altamente positivo que teve a reconstrução da Europa, nas duas décadas após a Segunda Guerra, sobre a economia americana. A estabilidade social, a democratização e o desenvolvimento econômico europeus foram ótimos para os EUA", acrescentou.
Esse raciocínio deve agora ser aplicado à esfera global. Assim, para o autor de "Development Economics" (economia do desenvolvimento), Washington deveria "investir na criação de riquezas no exterior, contribuindo para que os Estados menos abastados da cena internacional apresentassem níveis de crescimento econômico razoáveis e, com isso, tivessem sistemas políticos confiáveis, estabilidade social e paz".
Afinal, a corrosão social e a decomposição do Estado nas regiões menos desenvolvidas do planeta acarretam agitação, movimentos de refugiados consideráveis, intervenções militares dispendiosas, surgimento de guerrilhas e terrorismo.

Cai ajuda a países pobres
Apesar dessas constatações aparentemente lógicas, o governo do presidente George W. Bush tem outras prioridades. Assim, enquanto o orçamento do Departamento da Defesa -que lidera a guerra ao terrorismo internacional- atingirá, em 2003, o montante recorde de US$ 364,1 bilhões (quase o PIB da Austrália), os gastos americanos com ajuda para o desenvolvimento de países pobres caem acentuadamente.
"Washington deveria ajudar os Estados mais pobres a lutar contra a miséria, a fome, a degradação ambiental e doenças como a Aids e a tuberculose, além de lhes dar apoio tecnológico. Isso tudo deveria ser feito não apenas por razões éticas e humanitárias, mas também para obter segurança e benefícios econômicos a longo prazo", explicou Sachs.
De fato, quanto mais precárias forem as condições de vida nos países menos abastados do mundo, maiores serão as chances de que surjam movimentos antiamericanos ou, ao menos, contrários à cultura ocidental (mais rica e, portanto, dominante). Todavia, nos dois primeiros anos do atual governo dos EUA, ocorreu outro fenômeno preocupante: o distanciamento de Washington de dois de seus principais aliados europeus: a França e a Alemanha.
Em 2002, dois fatos marcaram as relações entre os EUA e seus tradicionais parceiros da União Européia. Em setembro, o chanceler (premiê) alemão, Gerhard Schröder, que buscava a reeleição -mas estava mal nas pesquisas-, usou a forte oposição da população do país a um ataque ao Iraque como uma de suas bandeiras de campanha, sustentando que a Alemanha não participaria de uma ofensiva militar dos EUA contra Saddam Hussein.
"É surpreendente que um chanceler da Alemanha, país que é um dos maiores aliados dos EUA desde o fim da Segunda Guerra, faça campanha francamente antiamericana para ganhar uma eleição", avaliou Charles A. Kupchan, autor de "The End of the American Era: U.S. Foreign Policy and the Geopolitics of the Twenty-First Century" (o fim da era americana: a política externa dos EUA e a geopolítica do século 21).
Em segundo lugar, em meados de outubro e no início de novembro, vários Estados -liderados pela França, de Jacques Chirac- enfrentaram Washington na ONU, pois não queriam que a resolução sobre o desarmamento do Iraque contivesse uma cláusula que permitisse uma ofensiva militar imediata caso Saddam não obedecesse as determinações da organização. A tese defendida pela França foi aprovada.
É verdade, contudo, que esse fenômeno não é novo. "Nos anos 50 e 60, duas coisas preocupavam os EUA em relação à Europa. Primeiro, que a França, comandada por Charles De Gaulle, e que a Alemanha Ocidental pudessem começar a operar de modo independente da política externa americana. Os EUA temiam que elas pudessem se opor à Otan e às suas políticas", afirmou Tilly. Entretanto, fora do contexto bipolar da Guerra Fria, isso é incomum.

Antiamericanismo europeu
"Os EUA tendem a subestimar as reações da opinião pública e dos políticos europeus, o que, cada vez mais, é malvisto na Europa. Para os países da União Européia, a cena internacional é regida primeiro pela Justiça e depois pela força. Isso num contexto de multilateralismo, de cooperação entre aliados. Para Washington, a força vem primeiro, além de o unilateralismo ser justificável na defesa dos "interesses nacionais'", analisou Françoise de La Serre, do Centro de Estudos e de Pesquisas Internacionais (Paris).
De acordo com Joseph Nye, reitor da Kennedy School of Government, da Universidade Harvard (EUA), a visão internacional negativa da política externa americana poderá até minar o "soft power" [a força internacional de um país que advém de sua influência cultural e ideológica sobre o restante do planeta" dos EUA.
"O "soft power" é a capacidade de um país de obter os resultados que quer por meio de seus atrativos, não da coerção. Ora, se o restante do mundo pensar que os americanos tentam impor suas idéias de modo unilateralista, os EUA serão vistos como uma potência imperialista, o que minará sua atratividade", explicou Nye.
Por enquanto, cabe, portanto, à comunidade internacional e aos defensores de um ambiente de cooperação global apenas esperar que os atentados terroristas desapareçam do imaginário americano e que tempos menos conturbados criem um clima mais propício ao multilateralismo. (MSM)


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