São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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ARTIGO

Rompendo o silêncio sobre o Opus Dei

JUAN JOSÉ TAMAYO-ACOSTA
ESPECIAL PARA O "EL PAÍS"

Sobre o Opus Dei foi estendido um véu de silêncio que poucos ousam romper. É como se houvesse um pacto, pelo menos tácito, para não falar dele. E, como aquilo de que não se fala não existe, tem-se a impressão de que o Opus Dei se diluiu ou, pelo menos, se recolheu para o mundo da salvação das almas para o qual nasceu, segundo dizem seus documentos fundadores.
No fim, muitos acabam por acreditar nas notas concisas emitidas pela assessoria de imprensa do Opus Dei, segundo as quais a "Obra" do monsenhor Escrivá de Balaguer se move no terreno espiritual e não pretende um projeto temporal, como a tal instituição. Vou transgredir aqui o pacto de silêncio, consciente de que corro o risco de ser recriminado até mesmo por alguns críticos da Obra.
O Opus Dei continua vivo e ativo, e seu poder se estende por toda a largura e a extensão da Igreja Católica. Em sua cúspide, conta com seguidores e defensores incondicionais. O primeiro destes é João Paulo 2º, que, antes de entrar no conclave do qual saiu papa, foi rezar diante do túmulo de Escrivá, em Roma, em busca de intercessão para o cumprimento das possíveis responsabilidades que pudessem ser colocadas sobre seus ombros.
Ao retornar de sua primeira viagem aos EUA, o papa, exultante com as multidões que o haviam recebido, perguntou a seus colaboradores mais diretos, no avião, que impressão os americanos deveriam ter feito da visita. Responderam-lhe que "o cantor agradou, mas não o canto". João Paulo 2º comentou, então: "Está claro que a única organização eclesiástica que me é inteiramente fiel é o Opus Dei".
Passando por cima da resistência de cardeais, bispos, teólogos e movimentos cristãos de todo o mundo, João Paulo 2º beatificou em tempo recorde -apenas 17 anos após sua morte- o fundador da Obra, Escrivá de Balaguer, chamado com ar paternalista não dissimulado de "o pai". Isso aconteceu em 1992.
Foi uma das beatificações mais polêmicas e contestadas, comparável nos tempos recentes apenas e unicamente à de Pio 9º, o chamado "papa rei", que, durante seu longo pontificado, de 32 anos (1846-1878), se destacou por sua militância anti-semita e antimoderna. De ambos destacaram-se a obediência à ortodoxia e a piedade à moda antiga, mas não a opção pelos pobres nem a tolerância, virtudes que não praticaram. Essa beatificação jamais teria acontecido com Paulo 6º, que limitou o poder do Opus Dei na Igreja Católica.
No processo de beatificação de Escrivá foram excluídos os testemunhos críticos de pessoas que conviveram muito de perto com "o pai", como o arquiteto Miguel Fisac, vinculado à Obra durante 19 anos (1936-1955).
O prestigioso arquiteto comunicou ao cardeal Tarancón que considerava ser seu dever de consciência fazer um depoimento no processo. O cardeal lhe indicou que transmitiria seu desejo ao secretário do tribunal para que o incluísse na lista, mas, alguns dias depois, o fez saber que ele tinha sido excluído.
Menos êxito tiveram as teólogas e os teólogos latino-americanos de todas as tendências e os movimentos cristãos de base popular ampla que vêm pedindo ao papa a beatificação dos mártires salvadorenhos: monsenhor Romero, seis jesuítas e duas mulheres, reconhecidos como santos e venerados na América Latina e outros lugares da cristandade.
O domínio da informação no Vaticano -isto é, na Igreja Católica universal- está nas mãos do porta-voz Joaquín Navarro Valls, membro do Opus Dei. Se informação é poder, quem a controla na igreja detém todo o poder. O porta-voz não apenas difunde a informação como também a cria, a elabora e a administra "pro doma sua", sem se submeter a controle democrático nenhum. E uma parte fundamental da informação consiste em ocultar ou negar a influência da Obra no Vaticano.
Na órbita do Opus Dei encontram-se o cardeal Angelo Sodano, secretário de Estado da Cidade do Vaticano, ex-núncio apostólico de Sua Santidade no Chile e amigo pessoal de Pinochet, e o cardeal espanhol Eduardo Martínez Somalo, membro muito influente da cúria romana, que constitui uma referência fundamental para os bispos espanhóis.
Assim, desde a cúspide do catolicismo vai tomando forma um cristianismo intransigente e pouco aberto ao diálogo com outras crenças religiosas, segundo recomenda "Camino", livro escrito por Escrivá na Guerra Civil Espanhola, em Burgos, muito perto do quartel-general de Franco: "O plano de santidade que nos pede o Senhor é determinado pelos três pontos seguintes: a santa intransigência, a santa coação e a santa ausência de vergonha". E mais: "A transigência é sinal certeiro de que não se tem a verdade".
Na Igreja Católica latino-americana destacam-se duas figuras do Opus Dei: o cardeal Cipriani, bispo de Lima, e o monsenhor Sáenz Lacalle, arcebispo de San Salvador. Cipriani apoiou até o último minuto os métodos políticos ditatoriais de Fujimori. Sua indicação para cardeal foi polêmica, já que era rejeitada por uma parte importante dos cristão peruanos. Durante a primeira missa de Cipriani como cardeal no átrio da catedral de Lima, a multidão abriu faixas na igreja com dizeres como "Deus, livrai-nos de Cipriani" e "Cristo é justiça; Cipriani, corrupção" e o comparou ao maior assessor de Fujimori, Vladimiro Montesinos. Apesar disso, ele é um dos nomes em alta na igreja latino-americana.
O clima de submissão hoje vigente na Igreja Católica se inspira numa máxima de "Camino". "Obedecer ... caminho seguro", diz o texto. "Obedecer cegamente ao superior, caminho de santidade. Obedecer em teu apostolado... o único caminho: porque, numa obra de Deus, o espírito tem de ser o de obedecer ou partir."


Juan José Tamayo-Acosta é teólogo espanhol.

Tradução de Clara Allain


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