São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

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A FOME ANUNCIADA

A OUTRA BATALHA

Anos de conflitos, sanções econômicas e desvarios políticos devastam o país

7,5 milhões precisam de comida no Afeganistão

Reuters
Criança afegã recebe prato de comida distribuída gratuitamente na parte externa de um restaurante em Karachi, no Paquistão


Órgão internacional prevê desastre em massa e a morte de milhões se a guerra continuar

ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

Um desastre em massa, com a morte de milhares ou até milhões de pessoas pode estar próximo de ocorrer no Afeganistão, segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), órgão que reúne 180 países.
"É o que parece que vai acontecer, se a guerra continuar. Nós gostaríamos de esperar por algo melhor, mas todo mundo está preocupado a respeito de quanto isso vai durar", afirmou à Folha, por telefone, o economista Aziz Arya.
Ele é o autor de um relatório especial do organismo que cuida da agricultura no mundo sobre a situação afegã e faz parte do serviço de aconselhamento e informação global da FAO, no escritório central em Roma.

O tamanho da tragédia
O desastre pode atingir 7,5 milhões de afegãos que necessitam "desesperadamente" de ajuda alimentar -6 milhões de pessoas dentro do país e 1,5 milhão nas fronteiras, entre os refugiados. "O impacto será maior ainda nas regiões remotas, de difícil acesso", prevê o economista.
Para a FAO e outros organismos internacionais, trata-se de uma luta contra a guerra e uma corrida contra o tempo.
É preciso levar os suprimentos antes do início do inverno. A neve que começa a atingir o país a partir da metade de novembro torna certas regiões inacessíveis, sobretudo no Hindu Kush, no nordeste do Afeganistão, fronteira montanhosa com a Índia.
Os bombardeios dos Estados Unidos destruíram boa parte do que restava da infra-estrutura viária, já combalida após 22 anos em guerra. As forças em disputa no conflito estão dificultando a atividade da ajuda internacional, e as organizações humanitárias já abandonaram várias regiões do país.
Arya conta que muitos motoristas de caminhões não querem se arriscar a entrar no Afeganistão, pois não conseguem chegar aos locais e temem as bombas, já que não sabem onde elas irão cair.
"O maior problema é o tempo e a acessibilidade. É preciso colocar essa comida dentro do Afeganistão logo, para manter os habitantes vivos durante o inverno rigoroso", afirma Arya. A escassez de alimentos não foi provocada pela guerra atual. O conflito com os EUA, porém, agravou o quadro.
Segundo cálculos iniciais, de antes do conflito, havia a necessidade de 2,2 milhões de toneladas de alimentos para o Afeganistão.
"Agora, esse não é um número realista", diz o economista. Seria necessário cerca de 1,5 milhão de toneladas a mais, uma vez que o país abandonou toda a exportação. Os alimentos enviados pelos organismos internacionais são basicamente trigo, arroz e óleo.

Terra devastada
O desastre se configura maior ainda devido às dificuldades de cultivo no Afeganistão. Cerca de 85% da população total de 20 milhões de afegãos depende da agricultura. A temporada de plantio de trigo começou neste mês e termina em novembro.
O trigo representa 80% da produção de cereais no país e fornece de 60% a 70% dos suprimentos de uma dieta média.
Boa parte dos cultivos, porém, foi destruída. A população está em constante movimento, abandonando as plantações. Não há sementes nem fertilizantes suficientes, que em geral eram importados do Paquistão e do Irã.
O regime do Taleban baniu o plantio da papoula, que serve à produção do ópio, mas não substitui o cultivo, feito antes em larga escala. "As autoridades não fizeram planos sobre o que pôr no lugar. Alguns fazendeiros trocaram o plantio da papoula por conta própria, substituindo-o pelo trigo, por exemplo. Mas, com a seca, as sementes não brotaram", conta Aziz Arya.
A seca de cinco anos (a mais grave em três décadas no país), mas também os 22 anos de guerras, as sanções internacionais que limitaram o comércio internacional com o Afeganistão e a falta de política agrícola do Taleban reduziram a produção rural em 65% em dois anos. O déficit de grãos antes da guerra já era de 2,3 milhões de toneladas.
As reservas de água, os canais de irrigação e os sistemas de escoamento também foram destruídos. Arya cita ainda a redução da mão-de-obra nas plantações, devido ao número de vítimas de minas espalhadas pelo solo afegão.
Os habitantes, que em geral estocam para o inverno, estão sobrevivendo com pequenas reservas de alimentos.
A FAO calcula que sejam necessários US$ 200 milhões para a implantação emergencial de um programa de agricultura no Afeganistão no pós-guerra.
O programa de médio prazo incluiria a reconstrução da infra-estrutura, o fornecimento de recursos aos agricultores e a reabilitação das áreas de cultivo. Mas, no momento, a prioridade é outra: "Estamos concentrados em salvar vidas", diz Arya.



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