São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

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PONTO ZERO

Hoje, ato multirreligioso reúne pela primeira vez nos escombros os parentes de desaparecidos

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SÉRGIO DÁVILA
DE NOVA YORK

Hoje, pela primeira vez desde o dia 11 de setembro, parentes de mortos e desaparecidos no atentado ao World Trade Center pisarão nos escombros em que muitos dos seus familiares ainda estão enterrados.
A Prefeitura de Nova York convidou e espera receber pelo menos 1.500 famílias.
Juntos, vão assistir a uma cerimônia multirreligiosa prevista para durar aproximadamente uma hora.
O evento está marcado para começar às 12h (14h de Brasília). Durante o período da cerimônia, todos os tipos de trabalho de resgate e limpeza nas ruínas serão interrompidos.
"Será catártico", disse o prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani. "Principalmente para aqueles cujos parentes ainda não foram encontrados."
Está prevista a distribuição de cerca de 5.000 bandeiras dos EUA à entrada do memorial, que será fechado ao público.
Na última semana, a Folha ouviu casos de parentes e amigos de desaparecidos e outras pessoas que de alguma maneira se relacionam com o atentado.
Há casos de falsa amizade e traição, de profissionais dedicados e de ajuda internacional.
Leia algumas dessas histórias a seguir.

A falsa amiga
O nome de Laura Gilly, 33, está entre os quase 700 funcionários desaparecidos da corretora de valores Cantor Fitzgerald. Ela morava em Dyker Heights, no Brooklyn, e já estava trabalhando no 105º andar do World Trade Center na manhã de 11 de setembro quando tudo aconteceu.
Desde então, sua mãe, Phillys, que mora em Staten Island, também em Nova York, vem tentando aceitar a morte da filha.
Até que, há algumas semanas, recebeu o extrato do cartão de crédito de Laura (ela transferiu todas as contas para seu endereço).
Segundo as faturas do MasterCard, a filha havia gasto US$ 4.600 entre os dias 15 e 18 de setembro (após o atentado, portanto). Comprou US$ 600 em roupas e acessórios nas lojas Banana Republica e Ann Taylor e US$ 2.000 em jóias. Os outros US$ 2.000 foram usados em artigos religiosos.
A polícia foi acionada. Poucos dias depois prendeu Sandra Miranda, 35. Quando colocada frente a frente com a mãe de Laura, esta lembrou que havia emprestado a chave do apartamento da filha para ela, que disse que iria até lá alimentar o gato de estimação "da melhor amiga".
Sandra está presa e responde a processo por falsificação, roubo e posse de objetos roubados, com fiança de US$ 25 mil. As compras foram encontradas em seu apartamento. Além disso, os policiais descobriram que ela trabalhou com Laura na Cantor, de onde foi demitida no dia 7 de julho, e que já tinha sido presa outra vez.
Não, apesar do nome, "Sandra não é brasileira", disse à Folha seu advogado, Guy Oksenhendler, que não deu mais detalhes.

A ajuda da internet
Entre todas as escolas de Nova York que receberam presentes, cartas e homenagens de estudantes do mundo inteiro depois do atentado, nenhuma foi tão contemplada quanto a Manhattan School for Children, na rua 93, no centro norte de Nova York.
Desde o dia 11 do mês passado, milhares de envelopes, 20 mil para ser mais preciso, trouxeram mensagens como esta, de um aluno do primário de uma escola da cidade de Lelystad, na Holanda: "I love jou soo mats" (I love you so much, "Eu te amo muito", escrito em mau inglês).
Outros pacotes revelam desenhos infantis, a maioria de bandeiras dos Estados Unidos, em diversos formatos e releituras, uma encarnada num urso, outra como se fosse o rosto do presidente George W. Bush.
Há também "recriações" do momento do acidente, visto e revisto na TV pelas crianças à exaustão em todos os lugares do mundo. Uma delas mostra os dois prédios em chamas, os aviões se chocando e a legenda: "Corram!". Outros pacotes traziam comida e roupas, que foram encaminhadas para a Cruz Vermelha local.
Mas por que tanto e justo para aquela escola?, perguntou-se a coordenadora Alysa Essenfeld. A resposta veio no site de buscas Google (www.google.com), um dos mais populares da internet.
Ao se digitar as palavras "manhattan", "school" e "children", como devem ter feito já no dia 11 centenas de professores e alunos solidários ao redor do mundo, o site que aparece é justamente o da escola da rua 93...

O Ground Zero Café
Nas primeiras horas após o ataque, um grupo de artistas, designers e fotógrafos se reuniu na casa de um deles, no Brooklyn, e decidiu que tinha de fazer alguma coisa para ajudar as equipes de resgate que começaram a se formar em torno dos escombros do World Trade Center.
Liderados pelos fotógrafos Amisioux e François Hugon, que formam o grupo artístico "tourniquet", eles ocuparam as dependências de uma lanchonete Burger King, a poucos metros do fogo, em Manhattan, e lá começaram a cozinhar para os bombeiros e policiais. Foi por 48 horas o único lugar a servir refeição quente no local do atentado.
Primeiro improvisaram um sopão com todos os ingredientes que cada um tinha trazido de casa. Tomada a última cumbuca e diante da fila que só crescia, passaram a usar os hambúrgueres que estavam congelados nos refrigeradores da própria lanchonete. De lá partiram para saquear os restaurantes em volta, abandonados às pressas e abertos.
Dois dias depois, quando a polícia já tinha controle total da área em torno do acidente e muitos voluntários foram expulsos do que afinal é a maior cena de crime da história, o pessoal conseguiu autorização para continuar a trabalhar. Foi quando alguém pensou em fazer a placa, pintada a mão em letras vermelhas.
Nascia o "Le Ground Zero Café" (o café do "ponto zero"), conforme aviso colocado na fachada destruída. Virou o "point" dos escombros, pelo menos nos primeiros cinco dias.
Ajudado por restaurantes próximos, o pessoal do café chegou a atender 1.500 pessoas por dia, com três refeições quentes. Na segunda semana, porém, a agência federal que cuida do local assumiu a responsabilidade pela alimentação, e os artistas voluntários voltaram para casa.
Mas há quem diga que o hambúrguer nunca mais foi o mesmo.

A carteira sem cartas
Com 50 mil pessoas trabalhando lá diariamente, o World Trade Center era o único conjunto de prédios da cidade que tinha seu próprio CEP. As cartas, pacotes e envelopes que traziam o número 10048 eram despachadas diretamente para o posto da rua Church, que cuidava da região.
Lá, eram responsabilidade de seis carteiros, entre eles Emma Thornton, 57, no órgão desde 1971, que entregou sua primeira carta no complexo de prédios em 1974, ano em que a última torre foi inaugurada.
Ela servia do 77º ao último andar da Torre Norte, a primeira a ser atingida.
Naquele momento, estava na central, separando os envelopes que entregaria naquele dia. Quando ouviu o primeiro barulho, correu 15 minutos sem parar.
O problema é que Emma continua a receber pelo menos 90 mil cartas por dia endereçadas a One World Trade Center -e não tem mais para quem as entregar.
Ela visitava diariamente grande parte das 616 empresas cujo endereço era uma das duas torres, entre elas a corretora Cantor Fitzgerald, a mais atingida. Essas foram realocadas ou simplesmente deixaram de existir.
Muitos funcionários que ela acabava encontrando viraram seus amigos. Vários estão desaparecidos.
A maioria das empresas e dos funcionários já entrou em contato e passou os novos endereços. Mas é com os que não se manifestaram até hoje que Emma se preocupa. A cada dia, ela tem uma surpresa boa (alguém que aparece ou liga para dizer que está bem e passar os novos dados) e uma ruim (um nome no jornal, um telefonema de parente).
O correio decidiu segurar todas as correspondências não reclamadas por 90 dias. Depois vai consultar as autoridades federais para ver o que faz.
Há um outro problema. É para Emma que chegam as cartas do mundo inteiro com endereços como "Ground Zero, USA" e destinadas "Aos cachorros dos escombros", "Às pessoas feridas" e mesmo "Aos bombeiros heróis".
Com essas, o governo ainda não decidiu o que fazer.


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