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PONTO ZERO
Hoje, ato multirreligioso reúne pela primeira vez nos escombros os parentes de desaparecidos
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SÉRGIO DÁVILA
DE NOVA YORK
Hoje, pela primeira vez desde o
dia 11 de setembro, parentes de
mortos e desaparecidos no atentado ao World Trade Center pisarão nos escombros em que muitos dos seus familiares ainda estão
enterrados.
A Prefeitura de Nova York convidou e espera receber pelo menos 1.500 famílias.
Juntos, vão assistir a uma cerimônia multirreligiosa prevista
para durar aproximadamente
uma hora.
O evento está marcado para começar às 12h (14h de Brasília).
Durante o período da cerimônia,
todos os tipos de trabalho de resgate e limpeza nas ruínas serão interrompidos.
"Será catártico", disse o prefeito
de Nova York, Rudolph Giuliani.
"Principalmente para aqueles cujos parentes ainda não foram encontrados."
Está prevista a distribuição de
cerca de 5.000 bandeiras dos EUA
à entrada do memorial, que será
fechado ao público.
Na última semana, a Folha ouviu casos de parentes e amigos de
desaparecidos e outras pessoas
que de alguma maneira se relacionam com o atentado.
Há casos de falsa amizade e traição, de profissionais dedicados e
de ajuda internacional.
Leia algumas dessas histórias a
seguir.
A falsa amiga
O nome de Laura Gilly, 33, está
entre os quase 700 funcionários
desaparecidos da corretora de valores Cantor Fitzgerald. Ela morava em Dyker Heights, no
Brooklyn, e já estava trabalhando
no 105º andar do World Trade
Center na manhã de 11 de setembro quando tudo aconteceu.
Desde então, sua mãe, Phillys,
que mora em Staten Island, também em Nova York, vem tentando aceitar a morte da filha.
Até que, há algumas semanas,
recebeu o extrato do cartão de
crédito de Laura (ela transferiu
todas as contas para seu endereço).
Segundo as faturas do MasterCard, a filha havia gasto US$ 4.600
entre os dias 15 e 18 de setembro
(após o atentado, portanto).
Comprou US$ 600 em roupas e
acessórios nas lojas Banana Republica e Ann Taylor e US$ 2.000 em
jóias. Os outros US$ 2.000 foram
usados em artigos religiosos.
A polícia foi acionada. Poucos
dias depois prendeu Sandra Miranda, 35. Quando colocada frente a frente com a mãe de Laura, esta lembrou que havia emprestado
a chave do apartamento da filha
para ela, que disse que iria até lá
alimentar o gato de estimação "da
melhor amiga".
Sandra está presa e responde a
processo por falsificação, roubo e
posse de objetos roubados, com
fiança de US$ 25 mil. As compras
foram encontradas em seu apartamento. Além disso, os policiais
descobriram que ela trabalhou
com Laura na Cantor, de onde foi
demitida no dia 7 de julho, e que
já tinha sido presa outra vez.
Não, apesar do nome, "Sandra
não é brasileira", disse à Folha seu
advogado, Guy Oksenhendler,
que não deu mais detalhes.
A ajuda da internet
Entre todas as escolas de Nova
York que receberam presentes,
cartas e homenagens de estudantes do mundo inteiro depois do
atentado, nenhuma foi tão contemplada quanto a Manhattan
School for Children, na rua 93, no
centro norte de Nova York.
Desde o dia 11 do mês passado,
milhares de envelopes, 20 mil para ser mais preciso, trouxeram
mensagens como esta, de um aluno do primário de uma escola da
cidade de Lelystad, na Holanda: "I
love jou soo mats" (I love you so
much, "Eu te amo muito", escrito
em mau inglês).
Outros pacotes revelam desenhos infantis, a maioria de bandeiras dos Estados Unidos, em diversos formatos e releituras, uma
encarnada num urso, outra como
se fosse o rosto do presidente
George W. Bush.
Há também "recriações" do
momento do acidente, visto e revisto na TV pelas crianças à
exaustão em todos os lugares do
mundo. Uma delas mostra os dois
prédios em chamas, os aviões se
chocando e a legenda: "Corram!".
Outros pacotes traziam comida e
roupas, que foram encaminhadas
para a Cruz Vermelha local.
Mas por que tanto e justo para
aquela escola?, perguntou-se a
coordenadora Alysa Essenfeld. A
resposta veio no site de buscas
Google (www.google.com), um
dos mais populares da internet.
Ao se digitar as palavras "manhattan", "school" e "children",
como devem ter feito já no dia 11
centenas de professores e alunos
solidários ao redor do mundo, o
site que aparece é justamente o da
escola da rua 93...
O Ground Zero Café
Nas primeiras horas após o ataque, um grupo de artistas, designers e fotógrafos se reuniu na casa
de um deles, no Brooklyn, e decidiu que tinha de fazer alguma coisa para ajudar as equipes de resgate que começaram a se formar
em torno dos escombros do
World Trade Center.
Liderados pelos fotógrafos
Amisioux e François Hugon, que
formam o grupo artístico "tourniquet", eles ocuparam as dependências de uma lanchonete Burger King, a poucos metros do fogo, em Manhattan, e lá começaram a cozinhar para os bombeiros
e policiais. Foi por 48 horas o único lugar a servir refeição quente
no local do atentado.
Primeiro improvisaram um sopão com todos os ingredientes
que cada um tinha trazido de casa. Tomada a última cumbuca e
diante da fila que só crescia, passaram a usar os hambúrgueres
que estavam congelados nos refrigeradores da própria lanchonete.
De lá partiram para saquear os
restaurantes em volta, abandonados às pressas e abertos.
Dois dias depois, quando a polícia já tinha controle total da área
em torno do acidente e muitos voluntários foram expulsos do que
afinal é a maior cena de crime da
história, o pessoal conseguiu autorização para continuar a trabalhar. Foi quando alguém pensou
em fazer a placa, pintada a mão
em letras vermelhas.
Nascia o "Le Ground Zero Café"
(o café do "ponto zero"), conforme aviso colocado na fachada
destruída. Virou o "point" dos escombros, pelo menos nos primeiros cinco dias.
Ajudado por restaurantes próximos, o pessoal do café chegou a
atender 1.500 pessoas por dia,
com três refeições quentes. Na segunda semana, porém, a agência
federal que cuida do local assumiu a responsabilidade pela alimentação, e os artistas voluntários voltaram para casa.
Mas há quem diga que o hambúrguer nunca mais foi o mesmo.
A carteira sem cartas
Com 50 mil pessoas trabalhando lá diariamente, o World Trade
Center era o único conjunto de
prédios da cidade que tinha seu
próprio CEP. As cartas, pacotes e
envelopes que traziam o número
10048 eram despachadas diretamente para o posto da rua
Church, que cuidava da região.
Lá, eram responsabilidade de
seis carteiros, entre eles Emma
Thornton, 57, no órgão desde
1971, que entregou sua primeira
carta no complexo de prédios em
1974, ano em que a última torre
foi inaugurada.
Ela servia do 77º ao último andar da Torre Norte, a primeira a
ser atingida.
Naquele momento, estava na
central, separando os envelopes
que entregaria naquele dia. Quando ouviu o primeiro barulho, correu 15 minutos sem parar.
O problema é que Emma continua a receber pelo menos 90 mil
cartas por dia endereçadas a One
World Trade Center -e não tem
mais para quem as entregar.
Ela visitava diariamente grande
parte das 616 empresas cujo endereço era uma das duas torres, entre elas a corretora Cantor Fitzgerald, a mais atingida. Essas foram
realocadas ou simplesmente deixaram de existir.
Muitos funcionários que ela
acabava encontrando viraram
seus amigos. Vários estão desaparecidos.
A maioria das empresas e dos
funcionários já entrou em contato
e passou os novos endereços. Mas
é com os que não se manifestaram
até hoje que Emma se preocupa.
A cada dia, ela tem uma surpresa
boa (alguém que aparece ou liga
para dizer que está bem e passar
os novos dados) e uma ruim (um
nome no jornal, um telefonema
de parente).
O correio decidiu segurar todas
as correspondências não reclamadas por 90 dias. Depois vai
consultar as autoridades federais
para ver o que faz.
Há um outro problema. É para
Emma que chegam as cartas do
mundo inteiro com endereços como "Ground Zero, USA" e destinadas "Aos cachorros dos escombros", "Às pessoas feridas" e mesmo "Aos bombeiros heróis".
Com essas, o governo ainda não
decidiu o que fazer.
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