São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 2002

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ARTIGO

É hora de reeducar o mundo islâmico

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

O ano de 2002 foi um ano de terrorismo intensivo e violência mundo afora: cerca de 200 turistas mortos na explosão de uma discoteca em Bali e outras tantas vítimas, majoritariamente cristãs, linchadas na Nigéria; ataques no Paquistão a um consulado americano, a engenheiros navais franceses, a organizações e templos cristãos; alvos cristãos atacados nas Filipinas e uma sinagoga bombardeada na Tunísia, vitimando turistas alemães; a destruição de um hotel e o lançamento de mísseis terra-ar portáteis contra um jato comercial israelense no Quênia; vários atentados contra a Índia; a tomada de reféns num teatro em Moscou por rebeldes tchetchenos; o ataque a um petroleiro francês perto da costa do Iêmen. O maior número de atentados, porém, ocorreu contra a população civil de Israel e, embora 90% deles tenham sido evitados, os bem-sucedidos resultaram em centenas de mortos e milhares de feridos e mutilados.
Há várias coisas em comum entre essas ações: elas foram todas perpetradas por muçulmanos e quase sempre movidas pelo fanatismo religioso; além disso, a maioria se dirigiu contra "alvos moles", ou seja, civis indefesos, e nenhum ataque de envergadura ocorreu nos EUA ou na Europa Ocidental. Tal ausência resultou não da falta de tentativas, mas de boa prevenção. Seja como for, é difícil escapar à constatação de que, desde 11 de setembro de 2001, vigora um estado de guerra no planeta. A principal objeção daqueles que relutam em lançar mão de expressões bélicas consiste em procurar equacionar o fenômeno em termos de criminalidade: tratar-se-ia antes de um caso de polícia que de exércitos.
O equívoco desse raciocínio reside em julgar que só o conflito entre nações pode ser qualificado de guerra, mas é um fato que conflagrações desse tipo são relativamente recentes, enquanto, através da história, o grosso das guerras foi travado por tribos, etnias, seitas, castas, grupos sociais etc.
De certa forma, após a exceção de alguns séculos, voltou-se à regra geral.
Mas que guerra é essa? Será o "choque de civilizações" de que o professor Samuel Huntington, de Harvard, falou em seu célebre ensaio publicado em 1993 na revista "Foreign Affairs" e desenvolvido posteriormente em livro? Sim e não. Embora haja fatores econômicos envolvidos no drama contemporâneo, não são eles nem as disputas territoriais e outras querelas tradicionais as suas causas profundas. Pelo contrário, são as diferenças culturais, de civilização e visão de mundo que estão na raiz até mesmo dos problemas econômicos envolvidos. A idéia geral de Huntington e sobretudo sua polêmica frase-chave, segundo a qual "o islã tem fronteiras sangrentas", provaram-se nada menos que proféticas.
O que deixa a desejar, entretanto, é o modo como ele define os atores do entrechoque, a saber, de acordo com a religião que prepondera ou preponderou em tal ou qual lugar, algo que, para o autor, determina o caráter de uma civilização. Acontece que, se a religião professada pelos agressores é importante, assim como o é, para estes, a de suas vítimas, estas, por seu turno, não têm reagido como membros de civilizações religiosamente circunscritas. A motivação confessional existe de um lado apenas, e o que se vê entre os agredidos é uma imensa dificuldade de acreditar que seja essa a motivação dos atacantes. Daí a busca inútil de causas de todo tipo, exceto as religiosas.
Quantos americanos ou europeus, afinal, reconhecem-se na expressão "cruzadistas" que os militantes islâmicos lhes reservam? E, salvo no caso dos hindus do Estado indiano de Gujarat, que retaliaram contra uma atrocidade muçulmana anterior, e pouquíssimos eventos inócuos e marginais, não houve atentados ou ataques antiislâmicos em parte alguma, nem nos Estados Unidos nem no resto do Ocidente, nem mesmo em Israel: nada de muçulmanos trucidados ou bombas nas mesquitas. Os únicos atos de terror antimuçulmano foram perpetrados por seus próprios correligionários, em países islâmicos como a Argélia. Talvez seja, portanto, mais adequado entender a situação como o confronto entre duas visões de mundo: de um lado, uma pré-moderna, religiosamente enraizada; de outro, uma que é pós-iluminista e, no que diz respeito à política, pós-religiosa.
Se bem que nenhum dos ataques acima tenha se aproximado da gravidade do megaatentado inaugural, é este que lhes dá sentido, garantindo que sejam tomados, não como ocorrências isoladas, mas sim como ações de uma mesma conflagração cuja origem se encontra na crise generalizada do mundo islâmico e, de modo muito mais agudo, no seu núcleo, os países árabes. É nessas nações mal-formadas, pessimamente administradas, em franca regressão socioeconômica e nas quais o insucesso de um nacionalismo equivocado abriu as comportas do fundamentalismo religioso, que elites autoritárias e corruptas associaram-se primeiro a uma intelectualidade oportunista e, agora, a um clero sequioso de poder e sangue para, inventando uma sequência paranóica de inimigos externos, dirigir contra estes a ira de suas populações frustradas.
Como o islã não passou por nada semelhante à reforma do cristianismo ou à secularização do Ocidente e como o século 20 poupou os árabes da devastação da guerra total, seus porta-vozes recorrem a uma retórica bélica que, entre povos mais experientes, causa antes pasmo que horror.
Que o governo dos EUA, respaldado pela opinião pública local, veja o 11 de setembro e a Al Qaeda como manifestações da crise atual das nações muçulmanas e da disfuncionalidade das sociedades árabes praticamente assegura que, com ou sem guerra, o Iraque será ocupado pelos americanos.
Segundo a análise destes, não são somente as atrocidades de Bin Laden que se parecem com Pearl Harbor, mas é o mundo árabe mesmo que se assemelha ao Japão militarista. Em ambos os casos, grupos extremistas, xenófobos e agressivamente expansionistas conseguiram impor sua agenda ao resto da população, cativando inclusive sua simpatia e entusiasmo, para ao fim e ao cabo conduzir todos ao desastre completo. O Japão teve de ser derrotado, ocupado e, por assim dizer, reeducado antes de retornar à comunidade das nações. Ao que tudo indica, não é nada menos o que se prepara para o Iraque.
O país de Saddam Hussein é um microcosmo dos problemas da região. Os ingleses criaram o Iraque depois da Primeira Guerra reunindo três Províncias do então recém-dissolvido império otomano. A maior parte de sua população compunha-se de árabes xiitas do sul e de curdos do norte. A Província central era habitada por árabes sunitas, judeus, cristãos (assírios, caldeus e armênios) etc. O poder foi dado à minoria árabe sunita e, o trono dessa nova monarquia, à família Hashemita (a mesma do monarca jordaniano), que na época perdera o controle hereditário das cidades santas de Meca e Medina para a casa de Saud, que fundou a Arábia Saudita. Depois de duas limpezas étnicas, a dos cristãos (1933) e a dos judeus (virada dos anos 1940/50, precedida por um grande pogrom, chamado "Farhud ", em 1941) e a repressão constante de curdos e xiitas, os Hashemitas foram depostos e massacrados em 1958. O que veio em seguida foram golpes militares, a dilapidação da riqueza petrolífera em armamentos, guerras desastrosas (contra o Irã, a invasão do Kuait), o massacre de dezenas de milhares de curdos nos anos 80 e de xiitas na década seguinte. Saddam pertence à minoria árabe sunita que, representando menos de um quinto dos iraquianos, continua monopolizando o poder.
Há quem não entenda por que os EUA julgam necessário atacar o Iraque se não foi ainda comprovado nenhum vínculo entre Saddam Hussein e quem os agrediu, isto é, a Al Qaeda, uma organização comandada e em boa parte financiada por sauditas, que também suprem muitos de seus quadros e de seus prisioneiros em Guantánamo. Há, é claro, boas razões para depor um regime que, acumulando um arsenal de armas não convencionais, busca há muito o controle do petróleo e a hegemonia político-militar no Oriente Médio. A megalomania de um ditador instável constitui por si só um perigo que, numa região difícil e delicada, não é mais tolerável. Eliminar suas armas de destruição em massa, de cuja existência ninguém sério duvida, é um objetivo de curto prazo e, ao mesmo tempo, uma boa desculpa para implementar um projeto mais ambicioso, que implica em impor reformas profundas a todos os países vizinhos.
Como se se tratasse de um tabuleiro de xadrez, a conquista do Iraque completaria a ocupação das casas de uma mesma cor, possibilitando o exercício de pressões mais intensas sobre os sauditas e o Iêmen, além de servir tanto para, em conjunto com Israel e a Turquia, proteger a Jordânia e isolar a Síria e seu protetorado libanês quanto para ameaçar um flanco do Irã, enquanto o outro se encontra devidamente coberto pelo Afeganistão ocupado, que, por sua vez, com a Índia do outro lado, ajuda a manter bem-comportada a única nação islâmica sabidamente nuclearizada, o Paquistão. Nem se devem, de resto, ignorar dois possíveis brindes que viriam com a invasão: as reservas iraquianas, que relativizariam a importância do petróleo saudita, e, eliminando-se Saddam, que financia e inspira a Intifada e o maximalismo irredentista palestino, a consequente remoção de um dos grandes obstáculos à pacificação do conflito israelo-árabe.
O quadro do que 2003 parece prometer não deixa, assim, de ser paradoxal. Se uma das metas declaradas dos planejadores da destruição do World Trade Center era a de expulsar os americanos das terras islâmicas, o que conseguiram até o momento foi a maior concentração de seu poderio militar no coração mesmo do mundo árabe. Descontadas as pessoas assassinadas e o prejuízo econômico desde então já digerido, a primeira grande vítima da ação mais ambiciosa do terror islâmico acabou sendo justamente seu regime favorito, o do Taleban no Afeganistão. A segunda vítima séria foi a Intifada palestina.
A intenção provável de Iasser Arafat quando a desencadeou era a de, provocando uma reação excessiva de Israel, tornar inevitável a intervenção estrangeira no conflito, algo que lhe traria vantagens sem obrigá-lo a fazer concessões.
Esse estratagema só daria certo se, mantendo-se neutros, os EUA deixassem os europeus pressionarem os israelenses. Graças à Al Qaeda, a neutralidade americana ficou fora de questão. A próxima vítima é, quase certamente, Saddam Hussein, o ditador que chegou mais perto de obter a "bomba atômica árabe". O que virá a seguir está em aberto, mas, seja a eliminação da casa de Saud e o fim da promoção internacional de sua vertente wahabbista do islã ou a deposição dos aiatolás iranianos que comandam o mais antigo regime fundamentalista, seja a ocupação da Somália, um dos grandes refúgios de grupos islâmicos, ou da Líbia, propiciando o cerco do mais importante país árabe, o Egito, uma coisa é líquida e segura: as coisas não correrão de acordo com os planos originais de Osama bin Laden.


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