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VIZINHO EM CRISE
Polarização extrema, para a qual Chávez contribuiu com sua inflexibilidade, aproxima país de guerra civil
Radicalização e ódio ameaçam Venezuela
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Depois de quatro dias de avaliação in loco da crise venezuelana, o
historiador Marco Aurélio Garcia, enviado especial do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), afrouxou a gravata, na sala
de espera do aeroporto de Maiquetía, e resumiu o "imbróglio"
em uma única frase, curta e literalmente grossa: "Se não houver
uma grande c... aqui, é porque
Deus é venezuelano".
Uma avaliação que tem peso
duplo: o instrumental do historiador e o fato de Marco Aurélio ter
vivência pessoal de duas situações-limite que o empurraram
para o exílio, primeiro no Brasil
(1964) e, depois, no Chile (1973).
Há, logo, razoáveis chances de
que ocorra uma grande confusão,
para usar palavra vernacular. A
Venezuela parece ter eliminado
toda a racionalidade da discussão
pública, de parte a parte, e mergulhado num espiral de ódio incontrolável que, em alguns momentos, chega a lembrar o conflito entre árabes e judeus, claro que despido de aspectos religiosos.
Não por acaso, a oposição ao
presidente Hugo Chávez tem os
seus "bin ladens", como são chamados os potentíssimos morteiros que fazem explodir em suas
manifestações. E o governo tem
os seus "talebans", os mais radicais militantes dos Círculos Bolivarianos, grupos civis criados por
Chávez para defender sua "revolução bolivariana".
Os Círculos Bolivarianos fazem
parte do DNA da crise. A oposição diz que não passam de cópia
dos CDRs (Comitês de Defesa da
Revolução), criados por Fidel
Castro em Cuba para fazer trabalho social, numa ponta, e vigilância revolucionária, na outra.
Ninguém sabe ao certo quantos
são os militantes dos Círculos,
mas o próprio Chávez cuidou de
inflar os números, em avaliação
feita a uma missão de estudos do
CSIS (Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, com sede
em Washington), ao dizer que
eram 300 mil. O vice-presidente
José Vicente Rangel reduz a cifra a
80 mil ou, no máximo, 100 mil.
Sejam quantos forem, para a
oposição são os "círculos do terror", a mais evidente prova de que
Chávez pretende fazer da Venezuela uma reprodução de Cuba. É
um evidente exagero, mas, na Venezuela de hoje, o exagero, de parte a parte, é a rotina. Não há a menor disposição para resolver a crise, e, sim, um firme empenho em
esmagar o "inimigo".
O trator Chávez
Como se chegou a esse grau extremo de polarização? Parte da
culpa cabe a Chávez e à inflexibilidade política que demonstrou,
hoje reconhecida mesmo pelos
poucos adeptos seus que podem
ser rotulados como moderados.
Chávez elegeu-se, em 1998, com
56,24% dos votos, votação pouco
superior à de Fernando Henrique
Cardoso em 1994 (54,27%).
Ao contrário de FHC, Chávez
recusou-se a negociar com qualquer setor organizado da sociedade. Primeiro, dinamitou o sistema
partidário, ao qual acusa de corrupto, aliás com grande dose de
razão. Mas era o sistema partidário a que as classes médias venezuelanas haviam se habituado ao
longo de 40 anos de democracia,
quando os países vizinhos resvalavam para regimes autoritários.
Depois, atacou eleitoralmente a
CTV (Central de Trabalhadores
da Venezuela), ligada à AD (Ação
Democrática, versão local da social-democracia). Venceu a eleição, mas ganhou um portentoso
inimigo (a CTV diz ter 1,3 milhão
de membros num país de 23 milhões de habitantes).
Por fim, foi à luta contra a tecnoburocracia da PDVSA (Petróleos de Venezuela S.A.), a gigantesca estatal de 40 mil funcionários que responde por 25% da
economia, 50% dos impostos e
80% das exportações.
A PDVSA transformou-se em
um Estado dentro do Estado,
imune à prestação de contas sobre a maior parte de suas receitas.
Chávez tentou colocar sua própria gente na diretoria. E lançou a
Lei de Hidrocarburetos, que impede que a estatal retenha 80% de
suas receitas a título de custos
operacionais.
Criou também a Lei de Terras,
que permite ao poder público desapropriar terras privadas e redistribui-las.
Ambas as leis foram lançadas
em dezembro de 2001, no bojo de
um pacote de 49 medidas. Desde
então, a oposição transformou
seu medo de que Chávez fosse o
Fidel Castro venezuelano em uma
ofensiva para tirá-lo do poder.
Em abril, veio a tentativa de golpe de efêmera duração, em parte
porque a maioria das Forças Armadas respalda Chávez, em parte
porque ele mantém forte apoio
nos setores populares (a maioria
dos venezuelanos) e em parte
porque a própria oposição não
tem um líder de prestígio.
Mais polarização
Como é óbvio, o golpe só fez aumentar a polarização. A oposição
chama o presidente de "assassino", responsabilizando-o pelas
quase duas dezenas de mortes
ocorridas na megamanifestação
às vésperas da tentativa golpista.
O governo diz que o outro lado
também atirou. Segundo o vice
Rangel, "90% dos mortos foram
chavistas". A investigação até
agora não apontou os culpados.
Nesse cenário, é natural que a
missão do CSIS tenha chegado à
mesma conclusão de Marco Aurélio Garcia, embora de forma algo mais acadêmica:
"Nenhum de nós recorda uma
situação, em qualquer outro país
latino-americano, desde os anos
70, em que a polarização social e
política foi tão profunda e tão
aparentemente irreconciliável,
com a exceção de países que de fato passam por guerra civil", diz o
relatório final.
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