São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 2002

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VIZINHO EM CRISE

Polarização extrema, para a qual Chávez contribuiu com sua inflexibilidade, aproxima país de guerra civil

Radicalização e ódio ameaçam Venezuela

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Depois de quatro dias de avaliação in loco da crise venezuelana, o historiador Marco Aurélio Garcia, enviado especial do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), afrouxou a gravata, na sala de espera do aeroporto de Maiquetía, e resumiu o "imbróglio" em uma única frase, curta e literalmente grossa: "Se não houver uma grande c... aqui, é porque Deus é venezuelano".
Uma avaliação que tem peso duplo: o instrumental do historiador e o fato de Marco Aurélio ter vivência pessoal de duas situações-limite que o empurraram para o exílio, primeiro no Brasil (1964) e, depois, no Chile (1973).
Há, logo, razoáveis chances de que ocorra uma grande confusão, para usar palavra vernacular. A Venezuela parece ter eliminado toda a racionalidade da discussão pública, de parte a parte, e mergulhado num espiral de ódio incontrolável que, em alguns momentos, chega a lembrar o conflito entre árabes e judeus, claro que despido de aspectos religiosos.
Não por acaso, a oposição ao presidente Hugo Chávez tem os seus "bin ladens", como são chamados os potentíssimos morteiros que fazem explodir em suas manifestações. E o governo tem os seus "talebans", os mais radicais militantes dos Círculos Bolivarianos, grupos civis criados por Chávez para defender sua "revolução bolivariana".
Os Círculos Bolivarianos fazem parte do DNA da crise. A oposição diz que não passam de cópia dos CDRs (Comitês de Defesa da Revolução), criados por Fidel Castro em Cuba para fazer trabalho social, numa ponta, e vigilância revolucionária, na outra.
Ninguém sabe ao certo quantos são os militantes dos Círculos, mas o próprio Chávez cuidou de inflar os números, em avaliação feita a uma missão de estudos do CSIS (Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, com sede em Washington), ao dizer que eram 300 mil. O vice-presidente José Vicente Rangel reduz a cifra a 80 mil ou, no máximo, 100 mil.
Sejam quantos forem, para a oposição são os "círculos do terror", a mais evidente prova de que Chávez pretende fazer da Venezuela uma reprodução de Cuba. É um evidente exagero, mas, na Venezuela de hoje, o exagero, de parte a parte, é a rotina. Não há a menor disposição para resolver a crise, e, sim, um firme empenho em esmagar o "inimigo".

O trator Chávez
Como se chegou a esse grau extremo de polarização? Parte da culpa cabe a Chávez e à inflexibilidade política que demonstrou, hoje reconhecida mesmo pelos poucos adeptos seus que podem ser rotulados como moderados.
Chávez elegeu-se, em 1998, com 56,24% dos votos, votação pouco superior à de Fernando Henrique Cardoso em 1994 (54,27%).
Ao contrário de FHC, Chávez recusou-se a negociar com qualquer setor organizado da sociedade. Primeiro, dinamitou o sistema partidário, ao qual acusa de corrupto, aliás com grande dose de razão. Mas era o sistema partidário a que as classes médias venezuelanas haviam se habituado ao longo de 40 anos de democracia, quando os países vizinhos resvalavam para regimes autoritários.
Depois, atacou eleitoralmente a CTV (Central de Trabalhadores da Venezuela), ligada à AD (Ação Democrática, versão local da social-democracia). Venceu a eleição, mas ganhou um portentoso inimigo (a CTV diz ter 1,3 milhão de membros num país de 23 milhões de habitantes).
Por fim, foi à luta contra a tecnoburocracia da PDVSA (Petróleos de Venezuela S.A.), a gigantesca estatal de 40 mil funcionários que responde por 25% da economia, 50% dos impostos e 80% das exportações.
A PDVSA transformou-se em um Estado dentro do Estado, imune à prestação de contas sobre a maior parte de suas receitas. Chávez tentou colocar sua própria gente na diretoria. E lançou a Lei de Hidrocarburetos, que impede que a estatal retenha 80% de suas receitas a título de custos operacionais.
Criou também a Lei de Terras, que permite ao poder público desapropriar terras privadas e redistribui-las.
Ambas as leis foram lançadas em dezembro de 2001, no bojo de um pacote de 49 medidas. Desde então, a oposição transformou seu medo de que Chávez fosse o Fidel Castro venezuelano em uma ofensiva para tirá-lo do poder.
Em abril, veio a tentativa de golpe de efêmera duração, em parte porque a maioria das Forças Armadas respalda Chávez, em parte porque ele mantém forte apoio nos setores populares (a maioria dos venezuelanos) e em parte porque a própria oposição não tem um líder de prestígio.

Mais polarização
Como é óbvio, o golpe só fez aumentar a polarização. A oposição chama o presidente de "assassino", responsabilizando-o pelas quase duas dezenas de mortes ocorridas na megamanifestação às vésperas da tentativa golpista.
O governo diz que o outro lado também atirou. Segundo o vice Rangel, "90% dos mortos foram chavistas". A investigação até agora não apontou os culpados.
Nesse cenário, é natural que a missão do CSIS tenha chegado à mesma conclusão de Marco Aurélio Garcia, embora de forma algo mais acadêmica:
"Nenhum de nós recorda uma situação, em qualquer outro país latino-americano, desde os anos 70, em que a polarização social e política foi tão profunda e tão aparentemente irreconciliável, com a exceção de países que de fato passam por guerra civil", diz o relatório final.


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