São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma nova oportunidade

JAVIER SOLANA


Acreditamos que [Lula] já deu suficientes motivos para inspirar confiança aos parceiros externos do Brasil

O início do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva constitui, sem dúvida, o acontecimento político mais transcendente deste começo de século na América do Sul. Sua importância não se deve só ao tamanho e ao peso regional e mundial do Brasil. Da Europa, percebemos que a vitória de Lula abre uma alternativa política muito promissora em um subcontinente no qual, ultimamente, estendeu-se um sentimento generalizado de insatisfação e até de frustração diante da dificuldade de ver traduzidas em uma maior prosperidade e equidade social as conquistas democráticas e as políticas econômicas liberalizantes da década anterior.
Nós, europeus, compreendemos esse sentimento, levando em conta as grandes esperanças que os povos da América Latina depositaram nas mudanças políticas e econômicas dos anos 90, o que não deixa de conter riscos preocupantes. O primeiro deles é a possibilidade de se alastrar uma desorientação política, favorável ao surgimento de opções improvisadas e voluntaristas, que prometem progresso e justiça social sem o respaldo de estratégias políticas e econômicas bem meditadas e viáveis. A crise do sistema de partidos que é percebida em muitos países da América do Sul e o ressurgimento do populismo são sintomas claros do estado de ânimo que já começou a tomar conta dessa região.
O outro risco, mais grave ainda, é o de um desencanto com o sistema democrático que possa conduzir a sua desvalorização aos olhos de milhões de pessoas carentes e sem esperança.
Nesse cenário tão pouco alentador chega agora ao poder, no Brasil, uma alternativa de governo oferecida por um partido bem estruturado, representante de uma esquerda moderna, nascida de um sindicalismo industrial, debutando com sucesso na política regional e municipal e dirigido por um líder forte, com credibilidade e amadurecido em duas décadas de trabalho duro na primeira linha da competição política brasileira. Um líder que contou com o apoio de uma maioria avassaladora.
O desafio que Lula tem pela frente é realmente difícil, mas ele tem a vantagem de receber um país que, durante os oito anos precedentes, foi governado com responsabilidade e inteligência por seu predecessor, o presidente Fernando Henrique Cardoso, um dos governantes democráticos mais lúcidos de toda a história política da América Latina.
O Brasil herdado por Lula é um país melhor em praticamente todos os aspectos do que aquele de 1994. O sucesso de Fernando Henrique na estabilização econômica e os importantes avanços conquistados em áreas tais como a luta contra a pobreza, a saúde e a educação oferecem uma sólida base de partida para novos progressos econômicos e maiores conquistas sociais.
Se o presidente Lula conseguir, como temos certeza que irá, combinar estabilidade, crescimento e redução da pobreza e das desigualdades sociais, assentará um novo modelo de esquerda democrática e responsável para o resto da América Latina -modelo que, além do mais, estará voltado para reforçar o sistema de partidos atualmente em crise.
Lula vai precisar de compreensão e apoio tanto dentro como fora do Brasil. Acreditamos que já deu suficientes motivos para inspirar confiança aos parceiros externos do Brasil e conta, desde agora, com a confiança dos países da Europa. Confiamos no papel que ele vai desempenhar na evolução política e social de seu país, bem como na projeção que está sendo chamado a ter nos outros países latino-americanos. Na União Européia, temos muito presente a enorme importância que a experiência do governo de Lula terá para toda a região. Sabemos que o presidente tem consciência desse fato e valorizamos muito seu forte compromisso com a América Latina, com seu afã de desenvolvimento e sua necessidade de integração.
O propósito, manifestado pelo novo presidente, de relançar o processo de integração do Mercosul não pode estar mais em sintonia com os desejos da União Européia. Desde o início desse processo, a UE apostou fortemente no futuro do Mercosul. Logo após a sua criação, a UE estabeleceu negociações com o Mercosul para a conclusão de um Acordo Quadro de Cooperação Inter-regional. Assinamos esse acordo em 1995. Um dos principais objetivos do acordo foi preparar o terreno para a negociação de um Acordo de Associação, que deveria incluir a liberalização do comércio de bens e serviços.
É, portanto, natural que a UE tenha recebido com grande satisfação as manifestações do novo presidente do Brasil incluindo entre as prioridades de seu mandato a integração do Mercosul e sua associação com a Europa. Temos a firme vontade política de estabelecer uma estreita parceria com o Mercosul, que será uma peça-chave na construção da associação estratégica entre a UE e a América Latina. Temos a certeza de que, para atingirmos essa meta, encontraremos no presidente Lula um aliado fundamental, que abrirá uma nova oportunidade para a América Latina e para as suas relações com a UE.
Da Europa, desejamos ao novo presidente os maiores êxitos na sua gestão de governo e esperamos começar a trabalhar juntos, muito em breve, nos tantos temas bilaterais, regionais e internacionais em que o Brasil constitui, para a União Européia, um parceiro-chave.

Javier Solana, 60, é representante de Política Exterior e de Segurança Comum da União Européia. Foi chanceler da Espanha (1992-95) e secretário-geral da Otan (1995-99).


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