São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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Seriam idênticos os clones?

STEVENS KASTRUP REHEN


A ciência pode vir a dominar a clonagem, mas talvez seja sempre incapaz de repetir a beleza de nossa "imperfeição"

Clonar o ser humano, ou seja, produzir indivíduos perfeitamente idênticos entre si, é uma idéia que fascina e ao mesmo tempo assusta a humanidade. Esta é uma possibilidade sobre a qual se vem refletindo desde a década de 30, quando Aldous Huxley lançou sua famosa ficção "Admirável Mundo Novo", na qual descreve crianças idênticas sendo concebidas em linhas de montagem. Nos últimos anos, o anúncio da clonagem de ovelhas e outros animais, o sequenciamento do código genético humano e a existência de gestantes supostamente gerando clones em algum país distante fizeram-nos acreditar fortemente que esse dia se aproxima.
A complexidade de cada um de nós, seja ou não clone, é consequência da inter-relação de trilhões de células que formam nosso corpo. Células que, apesar de provenientes de um mesmo óvulo fecundado, diferem bastante entre si. Acredita-se atualmente que o segredo dessas diferenças esteja no modo particular como cada célula controla seus milhares de genes, regiões de nosso DNA através dos quais são produzidas todas as proteínas de que necessitamos.
Contidos no interior dos 46 cromossomos que compõem nosso genoma, os genes são repassados a outras células no processo de divisão celular. Portanto o código genético, acredita-se, está presente por inteiro e de forma idêntica no interior de cada célula do nosso corpo. Com exceção das hemácias, que não possuem núcleo, todas as demais células do corpo devem possuir 46 cromossomos. Este é o conceito vigente.
Uma falha na distribuição dos cromossomos durante o processo de divisão celular gera aneuploidia, fenômeno caracterizado pelo aparecimento de células com menos ou mais cromossomos do que os 46 esperados. Essas células comportam-se de forma diferente de células normais (diplóides) e, consequentemente, comprometem o desenvolvimento do organismo. Um exemplo de aneuploidia é a forma clássica da síndrome de Down, na qual uma cópia extra do cromossomo 21 está presente em todas as células da pessoa afetada pela doença. Portadores da síndrome têm atraso mental, fraqueza muscular, baixa estatura e anomalias cardíacas.
Numa situação um pouco mais complexa, porém teoricamente plausível, a geração de aneuploidia poderia estar restrita a um determinado órgão, não sendo, nesse caso, identificada em outros tecidos -nem no sangue. Quais seriam as consequências desse fenômeno? E se o órgão afetado for o cérebro?
O cérebro humano é composto por bilhões de neurônios, células extremamente diversificadas que fazem parte de redes muito complexas. São capazes de gerar e gerenciar nossa memória, emoções e comportamento. No entanto assume-se que células desse órgão, como as demais unidades formadoras de nosso corpo, possuem em condições não-patológicas 46 cromossomos cada uma.
Recentemente nosso grupo de pesquisa vem testando a hipótese da existência de células aneuplóides no cérebro de mamíferos. Utilizando modernas técnicas de citogenética molecular, fomos capazes de identificar mosaicos formados por neurônios aneuplóides e diplóides no sistema nervoso de camundongos saudáveis. No momento, estamos estendendo essa análise a cérebros humanos. E temos fortes indícios de que o mosaicismo neuronal, descrito inicialmente em roedores, também esteja presente em cada um de nós.
Ainda há muito que estudar a respeito desse fenômeno, e não podemos descartar a possibilidade de que, em humanos, o mosaicismo cerebral seja fator de predisposição a doenças neurodegenerativas e psiquiátricas, com etiologia complexa e variada, tais como o mal de Alzheimer, a esquizofrenia e o autismo. Entretanto, possivelmente, a consequência mais marcante de possuirmos células aneuplóides distribuídas de forma singular no interior de nossos cérebros seja garantir-nos individualidade.
É tentador especular que cada ser humano, clone ou não, possua um "mosaico cerebral intransferível" capaz de modular de forma particular o processamento das funções cerebrais básicas, como memória e os próprios sentidos.
A idéia de que não sejamos totalmente diplóides, mas que existam em nosso cérebro células geneticamente diferentes umas das outras, presentes em número variado e geradas ao acaso, poderá a longo prazo modificar vários conceitos existentes nas áreas de genética e neurociências e, quem sabe, ajudar a explicar parte das diferenças observadas entre gêmeos idênticos (univitelinos e clones). Num futuro não muito distante, poderíamos até ser concebidos em linhas de produção artificiais, mas sempre carregaríamos conosco um mosaico de neurônios incapaz de ser clonado!
O cenário imaginado por Huxley ou, mais recentemente, por Claude "Rael" Vorilhon e seus seguidores, talvez nunca se concretize. A ciência pode vir a dominar por completo o processo de clonagem, mas talvez seja sempre incapaz de repetir a beleza de nossa "imperfeição". Uma imperfeição rara, inimitável, possível resultado da "má distribuição" de cromossomos entre nossas células nervosas, justificando nossa complexidade, garantindo a nossos cérebros o título de mosaicos e definitivamente interferindo no modo como enxergamos a nós mesmos e aos próprios clones.


Stevens Kastrup Rehen, 31, é professor-adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro e cientista associado da Universidade da Califórnia em San Diego e do Scripps Research Institute (EUA).


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