São Paulo, sexta-feira, 05 de agosto de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Democracia direta já!

FÁBIO KONDER COMPARATO


A democracia entre nós ainda é um mero disfarce ideológico, roto véu que mal encobre a nudez da dominação oligárquica
Diante de mais uma crise reveladora da avançada morbidez que se alastra sobre o nosso corpo político, volta-se a propor o expediente de remendar o sistema eleitoral e partidário como remédio de salvação.
Ninguém contesta que a representação popular é indispensável no funcionamento das democracias modernas. Mas seria um erro trágico desconhecer que o cerne do regime democrático está na soberania popular efetiva, e não meramente simbólica. Ora, soberania popular efetiva significa dar voz e voto ao povo, não só para eleger os governantes mas também e sobretudo para decidir diretamente as grandes questões socioeconômicas do país e controlar a ação de todos os agentes públicos.
Sérgio Buarque de Holanda, porém, já assinalava que "a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido". Ela foi importada e aqui acomodada aos tradicionais privilégios das classes dominantes como mera fachada ou decoração externa para exibir perante as nações ditas civilizadas, de acordo com o velho complexo colonial, o grau avançado de nossa cultura política.
Na estrita verdade dos fatos, porém, longe de ser um simples mal-entendido, a democracia entre nós foi e continua a ser mero disfarce ideológico, um roto véu que mal encobre a nudez da dominação oligárquica. Aceitamos todas as fórmulas políticas e dispomo-nos a experimentar quaisquer novidades, desde que se possa manter e fazer funcionar uma democracia sem povo.
A nossa alfândega política só desembaraçou a importação da idéia democrática na segunda metade do século 19. Até então, prevaleceu nas chamadas elites o juízo expresso por Hipólito da Costa às vésperas da independência nas páginas do seu "Correio Braziliense": "Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis, mas a ninguém aborrece mais do que a nós que essas reformas sejam feitas pelo povo".
A novidade democrática foi levantada pela primeira vez pelo Partido Republicano. E ele o fez profusamente, segundo o estilo da época. O vocábulo "democracia" e expressões cognatas como "solidariedade democrática", "princípios democráticos" ou "garantias democráticas" aparecem nada menos do que 28 vezes no manifesto inaugural do partido, em 1870. Um de seus tópicos é mesmo denominado "A Verdade Democrática". Mas, sintomaticamente, nem uma palavra foi dita sobre o trabalho escravo. Os republicanos, aliás, sempre se abstiveram cuidadosamente de propugnar a abolição da escravatura.
Foi por isso que Joaquim Nabuco não hesitou em dizer profeticamente, na Assembléia Geral do Império, em 11 de junho de 1889, ou seja, cinco meses antes da manifestação de rebeldia de Deodoro da Fonseca contra o último gabinete ministerial da Monarquia: "Há uma razão para não ter chegado ainda a hora da República, e é que ainda não temos povo, e as oligarquias republicanas em toda a América têm mostrado ser um terrível impedimento à aparição política e social do povo".
Esse impedimento a que se referia o nosso grande homem público é o tradicional desprezo que as nossas falsas elites sempre votaram ao povo, desprezo esse que rapidamente se transforma em agudo temor quando elas percebem algum indício de revolta popular.
Ora, o estabelecimento de uma autêntica soberania do povo, usurpada pelos grupos oligárquicos que se sucedem ininterruptamente no poder, só será alcançado mediante o concurso de duas ações de longo alcance: a criação de instituições adequadas e a formação generalizada de um espírito público, isto é, do respeito integral aos valores republicanos e democráticos. Sem isso, jamais coibiremos, ainda que minimamente, a velhíssima prática da corrupção dos agentes públicos.
No capítulo da transformação institucional, a Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, lançada pela Ordem dos Advogados do Brasil, apontou o caminho certo ao apresentar à Câmara dos Deputados um projeto de lei que desbloqueia os instrumentos de democracia direta -o plebiscito e o referendo- e facilita o uso da iniciativa popular legislativa. Análogos projetos de lei estão sendo apresentados nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras Municipais de todo o país.
Fica aqui, pois, um apelo a todas as entidades comprometidas com a tarefa de regeneração de nossa vida política, para que apóiem oficialmente essa grande campanha cívica, enviando suas adesões ao endereço eletrônico: republicaedemocracia@yahoogrupos. com.br.
Oxalá os órgãos de representação popular compreendam que esta pode ser a sua última chance de recuperar perante a opinião pública a legitimidade política perdida.
Fábio Konder Comparato, 68, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, é presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB. É autor, entre outras obras, de "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos".

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