São Paulo, sexta-feira, 05 de agosto de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Crise política e desconfiança das instituições

JOSÉ ÁLVARO MOISÉS


A democracia perde força quando é muito grande a proporção dos que se sentem fraudados pela conduta dos políticos
A mais grave crise política e moral enfrentada pelo país nos últimos 20 anos ameaça se transformar rapidamente em crise institucional, mas o governo não admite isso. Age como se as denúncias não colocassem em questão especialmente a sua relação com o Congresso Nacional e com o sistema de partidos. O desprezo pelas instituições de representação se mostra na preferência pela mobilização de massas em vez da disposição para aceitar as exigências de "cortar na própria carne" -como o funcionamento das instituições democráticas poderá impor ao governo.
No início da crise, alguns analistas sustentaram que o presidente Lula só perderia o apoio popular de que dispõe se surgisse algum fato grave, um pecado capital que tivesse cometido. Esse pecado ainda não apareceu, mas a estranha entrevista do presidente à Rede Globo, dias atrás, mostrou, mais do que disposição para enfrentar as distorções do sistema político, um presidente solidário com uma prática política ilegal que pode estar acobertando o seu conhecimento e o seu aval aos descaminhos do seu partido.
O capital político do presidente apenas dá indícios de começar a se deteriorar, mas os efeitos da crise já apontam para os estragos impostos por ela à jovem democracia brasileira. Enquanto 78% dos entrevistados acreditam que existe corrupção no governo Lula, 64% dizem que a maioria dos políticos do seu partido está envolvida em casos de corrupção e 67% pensam que o PT pagou o chamado "mensalão".
Mais grave é o fato de 46% desaprovarem o Congresso Nacional e os políticos, a pior taxa dos últimos dez anos, mostrando que a crise gera desesperança e compromete a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas -solapando a legitimidade do regime.
Embora a democracia brasileira esteja relativamente consolidada, como reconhece boa parte dos especialistas, ela enfrenta contudo um paradoxo: além dos próprios políticos, as instituições democráticas são objeto de ampla e continuada desconfiança dos cidadãos.
Pesquisas de opinião mostram que, apesar de seu apoio ao regime democrático per se, mais de dois terços dos brasileiros não confiam nos Parlamentos, nos partidos, nos Executivos, no Judiciário e em serviços de saúde, educação e segurança.
Em vez de enfrentar o problema, Lula e o PT estão agravando isso, e é estranho que avalistas do governo como os sociólogos Alain Touraine e Candido Mendes nada tenham a dizer sobre as implicações desse fenômeno para um regime democrático que não pode correr o risco de comprometer a sua consolidação.
Na democracia, as instituições são importantes porque é por meio delas que as aspirações dos cidadãos se transformam em políticas públicas. Fator decisivo para isso é a confiança dos cidadãos em normas, mecanismos e procedimentos institucionais que asseguram que a igualdade de todos perante a lei e os direitos daí decorrentes possam converter interesses e demandas em políticas. A confiança é importante em virtude das inúmeras incertezas e imprevisibilidades que decorrem da complexificação da vida nas sociedades contemporâneas desiguais e globalizadas. Ela resulta, dentre outras coisas, de arranjos por meio dos quais direitos e deveres democráticos são respeitados por governos, partidos e burocracias de Estado, assegurando as tarefas de coordenação e cooperação social indispensáveis à realização de projetos coletivos por meio dos quais as sociedades enfrentam os seus dilemas.
A desconfiança das instituições, pelo contrário, é a forma de os cidadãos reagirem ao desmando ético e político da vida pública. Se alguma desconfiança é desejável para assegurar a autonomia dos cidadãos diante de estruturas de poder, a democracia se enfraquece quando é muito grande a proporção dos que se sentem fraudados pelo comportamento anti-republicano dos políticos e quando os cidadãos percebem as instituições como algo alheio à sua finalidade. Neste caso, a indiferença e a ineficiência das instituições democráticas diante da corrupção, fraude e desrespeito a direitos assegurados por lei geram suspeição e descrédito, porta aberta para anomia, descompromisso social e aumento da criminalidade.
Nessa situação, o sentido da cidadania desaparece, só os mais protegidos econômica e socialmente conseguem defender os seus interesses, os mais pobres perdem sua autonomia. O projeto de poder do PT desprezou essas implicações. A gestão das relações entre governo, partidos políticos e Congresso Nacional mostrou que, contra a crença na democracia, prevaleceu uma concepção que condena a possibilidade dos diferentes grupos sociais usarem as instituições para realizar suas aspirações. Os partidos políticos, especialmente, foram fraudados em sua função de intermediação, comprometendo sua função na democracia.
José Álvaro Moisés, 59, professor titular de ciência política, é coordenador do curso de gestão de política pública da USP e autor, entre outras obras, de "Os Brasileiros e a Democracia" (Ática, 1995). Foi secretário de Audiovisual do Ministério da Cultura (1995-2002).

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