São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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ANNA VERONICA MAUTNER


Vejo hoje pessoas caminhando sem sorriso, sem fé e sem esperança, rumo a uma máquina para apertar os botões

Penso nas eleições de hoje com enorme interesse, mas sem nenhum entusiasmo. Uma falta de fé paira no ar. Não sei explicar esse paradoxo. Desconfio de uns tantos fatos, especialmente do conteúdo dos discursos políticos. Exemplo: percebo um hiper-realismo, próprio do "economês", linguajar mais frequente. A linguagem sintética própria das ciências mais leva à formulação de dúvidas do que aos escaninhos da fé e da confiança. Discurso científico não é entusiasmante.
A procura incessante de transparência de novo nos leva à duvida, a pesquisar e questionar. Compreender, perceber é bom e eu gosto. Mas exagero pode provocar mudança na qualidade. De tanto desejarmos transparência nos atos públicos e o conhecimento dos meandros das razões dos políticos, perdemos o contato com o fato. Perde-se a possibilidade de crer. Afastamo-nos das ilusões. Ilusão não é obrigatoriamente mentira, apesar de muitas vezes o ser. Se houvesse bula de ilusão, ela conteria ingredientes como desejo, esperança e a presença do futuro no presente.
Nada mais humano do que a aptidão para elaborar profecias, róseas ou cataclismáticas, a partir de percepções. O pensamento delirante compõe também a alucinação. Ilusão "do bem" nos deixa continuar desejando e esperando enquanto vivemos o dia-a-dia.
Para eleger um líder, há que mobilizar as ilusões e sair à procura de candidatos que se pareçam com nossas ilusões. Este é o nosso momento, o da procura. Temos que eleger líderes para várias esferas de poder da vida pública. Estamos todos, candidatos e eleitores, mergulhados até o último fio de cabelo em argumentos à procura de provas. Não é hora de hipóteses. Os projetos e sonhos estão encobertos por excessos e sobras de argumentação. E, repetindo-me, excesso de melado lambuza. Argumentos convencem o especialista (que nós nem sempre somos) e inebriam, obscurecendo o pensamento de nós outros leigos.
E por onde anda a "pátria amada", que a gente gostaria tanto de amar? Perdeu-se na falta de paixão? Percebo uma certa identidade do que escuto e das expressões faciais de eleitores com o que vislumbro nos candidatos. Uns e outros pecam por excesso de realismo, exagero de informações e pela falta de ilusão. Não que eu tenha uma exaustiva análise do discurso dos candidatos, nem o conteúdo da motivação dos eleitores.
Exponho-me como uma esponja pouco criteriosa e nada científica. Embarco na intuição. Não sinto entusiasmo em volta de mim. Não percebo fé nos partidos ou nos candidatos. Vejo que, temendo a pecha de populista, ninguém promete. Temendo a pecha de maus eleitores, nós só desconfiamos. E vamos mergulhados neste mundo hiper-realista de vocabulário científico e argumentações bem estruturadas, cheio de números, datas e estatísticas.
Neste meio de pouca emoção, falta misericórdia, amor à pátria, respeito ao outro. Procura de exatidão não ofende, mas, em determinados momentos, esteriliza. As campanhas detalham como as poderosas instituições nos monitoram. O FMI não ama, muito menos ama o Banco Mundial, ou o mercado, ou o Federal Reserve. Ficamos abúlicos diante dos pareceres e relatórios que essas instituições publicam. Mas elas afinal foram criadas para gerar essas referências, e elas existem para monitorar.
Tudo isso traz uma grande vantagem: suas posturas assertivas são xeque-mate a possíveis salvadores da pátria. À pessoa dos candidatos resta simpatia e carisma. Retaguardas especializadas na construção de imagens se movimentam. São candidatos reverberando argumentos e lutando para passar incólumes pela exigência de transparência. Eles deixam de ser gente igual a nós, que não temos marqueteiros nos burilando. Junto com os assessores, porta-vozes e institutos de pesquisa, criam as "pessoas" do candidato. A mídia apresenta o "making of" (construção), muitas vezes ao mesmo tempo que o fato.
Essa visão concomitante de fotografia e raio-X funciona como um banho de água fria na relação eleitor-candidato. O que resta ao eleitor? Não adianta simplificar, metendo pau nos marqueteiros e nas instituições que nos monitoram de longe, lá do sossego do Primeiro Mundo. Já sabemos a receita para construir o candidato que as pesquisas dizem que nós queremos. Sabemos também, através das pesquisas qualitativas e quantitativas, que a nossa voz é ouvida. Talvez mais do que pelas urnas.
"O candidato tem que usar terno; para olho azul, camisa azul; dentes têm que ter jaquetas". E aí, alfaiates, dentistas entram em ação. Seus nomes são também divulgados. Some o palco. Os bastidores estão à vista. Os atores trocam de roupa em público. O cenário é mudado diante de nós. Assim estamos: anestesiados, intoxicados, impregnados de tanto saber tudo de tudo.
Esse desnudamento, essa apresentação das entranhas da vida em nome da ciência e da transparência será verdade ou é só mais uma imagem? Acompanho diariamente a apresentação de argumentos sobre assuntos nos quais não sou especialista, acompanho o dia-a-dia da construção dos nossos líderes, acompanho pesquisas que me dizem o que penso e prefiro; e chego a este triste momento desprovido de mistério.
Vejo hoje pessoas caminhando sem sorriso, sem fé e sem esperança, rumo a uma máquina para apertar 25 vezes os botões, para maior transparência da chegada dos resultados. Essa máquina, que poderia ser a metáfora da esperança, virou uma chata. Votamos no mais realista? Naquele que, através de sua total transparência, nos entedia menos?
A máquina que acionaremos será muito mais para dizer quem nós não queremos do que a afirmação da esperança de que o escolhido faça o que queremos.


Anna Veronica Mautner, psicanalista, é membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e colunista mensal do Folha Equilíbrio.



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