São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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O super-homem e a clonagem

LYGIA DA VEIGA PEREIRA


Com a clonagem terapêutica podemos gerar tecidos para transplante que tratarão as mais diversas doenças

Nos últimos cinco anos, a humanidade conheceu um novo método de reprodução em mamíferos, não a partir de óvulos e espermatozóides, mas a partir de uma célula qualquer de um indivíduo. A clonagem, inicialmente simbolizada por uma ovelha, parece ser um meio mágico de fazer cópias de uma vaca premiada ou uma pessoa querida.
Já fomos apresentados a clones de camundongos, porcos, coelhos, gatos e até macacos. Esses experimentos nos ensinaram uma lição: a clonagem como forma de reprodução de mamíferos é um desastre. Sim, para cada clone normal ao qual somos apresentados são geradas centenas de animais mal formados, abortados espontaneamente, mortos ao nascerem ou poucos dias após por defeitos respiratórios ou cardiovasculares.
Administramos relativamente bem os fracassos em animais, porém esse é um preço exorbitante e inaceitável a se pagar por um ser humano. Por isso, a ONU está organizando uma Convenção Internacional Contra a Clonagem Reprodutiva de Seres Humanos, categorizando essa prática como marginal, da mesma forma que a tortura e o terrorismo. O pretenso clonador será visto não como um candidato ao Prêmio Nobel, mas como uma versão biotecnológica de Osama bin Laden.
No entanto o ator Christopher Reeve, imortalizado no papel de super-homem, é um grande ativista da defesa da clonagem humana -da clonagem terapêutica humana (esta utiliza os mesmos mecanismos da clonagem reprodutiva para gerar, em vez de uma pessoa completa, somente tecidos dessa pessoa que podem ser utilizados para transplantes).
A clonagem terapêutica começa da mesma forma que uma clonagem reprodutiva, colocando-se uma célula qualquer de um indivíduo dentro de um óvulo vazio. Esse embrião clonado se desenvolve por cinco dias no laboratório, até formar um conglomerado de aproximadamente cem células.
Nesse momento, em vez de ser transferido para o útero de uma mulher, o que configuraria a clonagem reprodutiva, o embrião clonado é dissociado e suas células, chamadas células-tronco embrionárias, multiplicadas no laboratório. Essas células têm a capacidade de se transformar nos mais diversos tecidos: sangue, músculo cardíaco, tecido hepático, células secretoras de insulina e até neurônios. E, sendo geneticamente idênticos à pessoa da qual foi tirada a célula inicial, quando transplantados não correm o risco da rejeição.
Ou seja, com a clonagem terapêutica podemos gerar preciosos tecidos para transplante que tratarão as mais diversas doenças humanas, de leucemia, infarto ou cirrose hepática até diabetes e a doença de Alzheimer.
A grande polêmica em torno da clonagem terapêutica é a destruição daquele embrião para retirarmos as células-tronco embrionárias. Para alguns, isso significa destruir uma vida, por isso é inaceitável. Esta é uma questão delicada, que envolve aspectos culturais e religiosos. Países como Israel, China e o Reino Unido permitem a clonagem terapêutica, enquanto nos EUA, em nome da defesa da "vida" (aquelas cem células), o atual governo conservador luta pela proibição. Vale lembrar que, se sucumbirmos a esses argumentos fundamentalistas, por coerência deveríamos também fechar clínicas de fertilização "in vitro", proibir a pílula e a camisinha, mesmo na era da Aids.
É verdade que estratégias alternativas à clonagem terapêutica vêm sendo desenvolvidas. No nosso corpo existem outros tipos de células-tronco, como as da medula óssea ou do sangue do cordão umbilical, que produzem o sangue. Talvez essas células sejam capazes de produzir outros tecidos e também possam regenerar um coração infartado, por exemplo. Isso é de fato uma possibilidade na qual estamos investindo -até bancos de sangue do cordão umbilical vêm sendo criados para estocar esse material. Mas ainda não temos certeza da real versatilidade dessas células.
Não podemos abrir mão do bem documentado papel terapêutico das células-tronco embrionárias em troca da promessa das outras células-tronco. Christopher Reeve acredita que em pouco tempo as células-tronco embrionárias poderão ser usadas para regenerar sua coluna vertebral -a comunidade científica concorda.
Não deixemos que o fundamentalismo e a ignorância se tornem a "criptonita" do século 21, impedindo o tratamento do super-homem e de centenas de milhões de pessoas afetadas pelas mais diferentes doenças. O Brasil precisa se posicionar quanto a essa questão: vamos investir nas pesquisas com todos os tipos de células-tronco. Só assim poderemos viver a grande revolução da medicina regenerativa.


Lygia da Veiga Pereira, 35, doutora em genética humana pelo Centro Médico Monte Sinai, de Nova York, é professora do Departamento de Biologia e do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências da USP.


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