|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O super-homem e a clonagem
LYGIA DA VEIGA PEREIRA
Com a clonagem terapêutica podemos gerar tecidos para transplante que tratarão as mais diversas doenças
|
Nos últimos cinco anos, a humanidade conheceu um novo método de reprodução em mamíferos, não a
partir de óvulos e espermatozóides, mas
a partir de uma célula qualquer de um
indivíduo. A clonagem, inicialmente
simbolizada por uma ovelha, parece ser
um meio mágico de fazer cópias de uma
vaca premiada ou uma pessoa querida.
Já fomos apresentados a clones de camundongos, porcos, coelhos, gatos e até
macacos. Esses experimentos nos ensinaram uma lição: a clonagem como forma de reprodução de mamíferos é um
desastre. Sim, para cada clone normal
ao qual somos apresentados são geradas centenas de animais mal formados,
abortados espontaneamente, mortos ao
nascerem ou poucos dias após por defeitos respiratórios ou cardiovasculares.
Administramos relativamente bem os
fracassos em animais, porém esse é um
preço exorbitante e inaceitável a se pagar por um ser humano. Por isso, a
ONU está organizando uma Convenção
Internacional Contra a Clonagem Reprodutiva de Seres Humanos, categorizando essa prática como marginal, da
mesma forma que a tortura e o terrorismo. O pretenso clonador será visto não
como um candidato ao Prêmio Nobel,
mas como uma versão biotecnológica
de Osama bin Laden.
No entanto o ator Christopher Reeve,
imortalizado no papel de super-homem, é um grande ativista da defesa da
clonagem humana -da clonagem terapêutica humana (esta utiliza os mesmos
mecanismos da clonagem reprodutiva
para gerar, em vez de uma pessoa completa, somente tecidos dessa pessoa que
podem ser utilizados para transplantes).
A clonagem terapêutica começa da
mesma forma que uma clonagem reprodutiva, colocando-se uma célula
qualquer de um indivíduo dentro de
um óvulo vazio. Esse embrião clonado
se desenvolve por cinco dias no laboratório, até formar um conglomerado de
aproximadamente cem células.
Nesse momento, em vez de ser transferido para o útero de uma mulher, o
que configuraria a clonagem reprodutiva, o embrião clonado é dissociado e
suas células, chamadas células-tronco
embrionárias, multiplicadas no laboratório. Essas células têm a capacidade de
se transformar nos mais diversos tecidos: sangue, músculo cardíaco, tecido
hepático, células secretoras de insulina e
até neurônios. E, sendo geneticamente
idênticos à pessoa da qual foi tirada a célula inicial, quando transplantados não
correm o risco da rejeição.
Ou seja, com a clonagem terapêutica
podemos gerar preciosos tecidos para
transplante que tratarão as mais diversas doenças humanas, de leucemia, infarto ou cirrose hepática até diabetes e a
doença de Alzheimer.
A grande polêmica em torno da clonagem terapêutica é a destruição daquele embrião para retirarmos as células-tronco embrionárias. Para alguns,
isso significa destruir uma vida, por isso
é inaceitável. Esta é uma questão delicada, que envolve aspectos culturais e religiosos. Países como Israel, China e o
Reino Unido permitem a clonagem terapêutica, enquanto nos EUA, em nome
da defesa da "vida" (aquelas cem células), o atual governo conservador luta
pela proibição. Vale lembrar que, se sucumbirmos a esses argumentos fundamentalistas, por coerência deveríamos
também fechar clínicas de fertilização
"in vitro", proibir a pílula e a camisinha,
mesmo na era da Aids.
É verdade que estratégias alternativas
à clonagem terapêutica vêm sendo desenvolvidas. No nosso corpo existem
outros tipos de células-tronco, como as
da medula óssea ou do sangue do cordão umbilical, que produzem o sangue.
Talvez essas células sejam capazes de
produzir outros tecidos e também possam regenerar um coração infartado,
por exemplo. Isso é de fato uma possibilidade na qual estamos investindo -até
bancos de sangue do cordão umbilical
vêm sendo criados para estocar esse
material. Mas ainda não temos certeza
da real versatilidade dessas células.
Não podemos abrir mão do bem documentado papel terapêutico das células-tronco embrionárias em troca da
promessa das outras células-tronco.
Christopher Reeve acredita que em
pouco tempo as células-tronco embrionárias poderão ser usadas para regenerar sua coluna vertebral -a comunidade científica concorda.
Não deixemos que o fundamentalismo e a ignorância se tornem a "criptonita" do século 21, impedindo o tratamento do super-homem e de centenas
de milhões de pessoas afetadas pelas
mais diferentes doenças. O Brasil precisa se posicionar quanto a essa questão:
vamos investir nas pesquisas com todos
os tipos de células-tronco. Só assim poderemos viver a grande revolução da
medicina regenerativa.
Lygia da Veiga Pereira, 35, doutora em genética humana pelo Centro Médico Monte Sinai, de
Nova York, é professora do Departamento de
Biologia e do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências da USP.
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Anna Veronica Mautner: Voto Próximo Texto: Painel do leitor Índice
|