São Paulo, domingo, 25 de março de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

O homem lúdico/b>

HÉLIO SCHWARTSMAN

O "SHOW do Milhão", de Silvio Santos, impressiona. Em primeiro lugar, o programa é comentado, mesmo em ambientes insuspeitos. Outro dia, numa roda de jornalistas e intelectuais cujos nomes preservo, debatíamos acaloradamente o "Show do Milhão". Se já é difícil um intelectual admitir que vê TV, é quase impossível que conceda assistir a uma "bobagem" do breguíssimo SBT. Também é surpreendente que uma coisa tão antiga quanto um "quiz show" (programa de perguntas e respostas) sobreviva e faça sucesso numa TV que vive basicamente de novidades.
Digo "coisa tão antiga" porque os "quiz shows" são mais velhos do que a TV. Surgiram no rádio nos anos 30. Faziam tanto sucesso que foram adaptados para a tela nos EUA já no início dos anos 50, onde fizeram mais sucesso. Dizem que, durante a exibição dos programas mais populares, as ruas das grandes cidades ficavam desertas. Os "quiz shows" também entraram para a história como primeiro grande escândalo televisivo. Foi por meio desses programas que os EUA, e o mundo, descobriram que a TV podia mentir e mentia.
No início tudo funcionava bem. Mas um dia os produtores descobriram que podiam aumentar os índices de audiência se mantivessem no ar os participantes que tinham mais empatia com o público. Começaram, então, a orientá-los a respeito de como aparecer na TV, quando sorrir, como enxugar o suor. Em 1958, a marmelada já era total. Produtores escolhiam os concorrentes que "venceriam" e lhes passavam as respostas. O escândalo veio à tona. Foi um deus-nos-acuda. Em 59 não havia um único "quiz show" no ar nos EUA.
Deve ter sido mesmo chocante para os americanos descobrir que o lucro era mais importante do que a verdade, que o "american way" e o "fair play" não resistiam a uma pressãozinha dos patrocinadores. Muitos acharam que tudo aquilo só podia ser obra de comunistas ateus. Na verdade, aquilo era o "american way" em estado bruto, só que os americanos não deveriam saber disso.
Silvio Santos também manipula seu show, levando o candidato simpático que está se dando bem para o programa seguinte o maior número possível de vezes. Se, para isso, for preciso administrar o tempo, o apresentador chega a "mostrar" quanto são 20 segundos. Não sei se Silvio interfere no sorteio das perguntas. Acho que, depois de 58, ninguém o faz, mas não coloco minha mão no fogo.
Evidentemente, o "Show do Milhão", como quase tudo no SBT, já virou vários produtos. Para participar do programa, é preciso comprar a "Revista do SBT". Você ainda pode treinar em casa, se adquirir o CD-ROM do "Show do Milhão". Silvio Santos sugere que os compradores da revista chantageiem seus familiares "inteligentes". Ele insta as pessoas a inscreverem parentes "letrados" sem lhes contar nada. Na hipótese de a cartela ser sorteada, só o inscrito pode comparecer ao programa. Ou ele vai, ou a família perde a chance de ganhar um bom dinheiro.
O raciocínio é impecável; o que choca é a singelez com que Silvio o desenvolve. Lembrou-me um pouco aquela mensagem do SBT que diz "obrigado por assistir à nossa programação". "Mutatis mutandis" é como se eu titulasse meus artigos com um "por favor, leia texto abaixo". É honesto sem parecer rebuscado como "Globo e você, um caso de amor". Há uma sinceridade que seduz.
Apesar do indiscutível talento de Silvio Santos como comunicador, parte do sucesso de "Show do Milhão" se deve ao próprio formato de "quiz show". Em primeiro lugar, o programa funciona como uma loteria. Dá a chance de ganhar muito dinheiro. Mas, diferentemente da loteria, vencer não depende só de sorte. É aqui que o show ganha caráter de espetáculo. Vejo, na TV, uma pessoa que poderia ser o meu vizinho -ou até eu mesmo- diante de perguntas -cujas respostas eu também sei- e com a perspectiva de ganhar R$ 1 milhão -dos quais eu também preciso. É difícil até mesmo conceber uma forma mais eficiente de obter a empatia do telespectador.
Os universitários, com seus trajes a rigor e capazes de despejar as mais comprometedoras asneiras, dão o toque especial. Tornam-se uma paródia de si mesmos. Candidatos, mesmo nas situações mais difíceis, hesitam em recorrer aos universitários e seus arriscados palpites.
Outro ingrediente importante é o fato de o programa ser um jogo. Todos adoram jogar. E não só seres humanos. Mamíferos em geral e até algumas aves brincam. Aparentemente, os jogos têm um papel relevante no aprendizado. Brincadeiras serviriam para transmitir informações não-genéticas a um indivíduo. Assim, apenas espécies cujos pais tomem conta da prole brincam, e os jogos são mais comuns entre filhotes.
O historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) chegou a definir o homem como o ser que brinca. Em seu "Homo Ludens", de 1938, Huizinga afirma que o jogo é um traço essencial, talvez o mais importante, das sociedades humanas. Diferentemente dos outros animais que brincam, o homem é o único que o faz conscientemente, e durante toda a vida, para obter prazer. Para Huizinga, todas as atividades humanas, incluindo filosofia, guerra, arte, leis e linguagem, podem ser vistas como o resultado de um jogo ou, para usar uma terminologia mais técnica, "sub specie ludi" (a título de brincadeira).
Se falamos, é porque alguém resolveu, muito tempo atrás, brincar com sons e significados. Quando filosofamos, estamos na verdade jogando com conceitos. Nada, portanto, encanta mais o homem do que o jogo. Como sugere o título da obra de Huizinga, o Homo sapiens pode ser substituído pelo Homo ludens. A tese tem subprodutos interessantes. Ela ajuda a explicar por que programas do tipo "Show do Milhão" nos fascinam tanto. Ela também nos dá uma espécie de salvo-conduto para, agora cientificamente, considerar o mundo uma piada.




Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo: Eterno retorno
Próximo Texto: Filmes e TV Paga
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.