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CRÍTICA
O homem lúdico/b>
HÉLIO SCHWARTSMAN
O "SHOW do Milhão", de Silvio Santos, impressiona.
Em primeiro lugar, o programa é comentado, mesmo
em ambientes insuspeitos. Outro dia, numa roda de
jornalistas e intelectuais cujos nomes preservo, debatíamos acaloradamente o "Show do Milhão". Se já é difícil um
intelectual admitir que vê TV, é quase impossível que conceda
assistir a uma "bobagem" do breguíssimo SBT. Também é surpreendente que uma coisa tão antiga quanto um "quiz show"
(programa de perguntas e respostas) sobreviva e faça sucesso
numa TV que vive basicamente de novidades.
Digo "coisa tão antiga" porque os "quiz
shows" são mais velhos do que a TV. Surgiram no rádio nos anos 30. Faziam tanto sucesso que foram adaptados para a tela nos EUA já
no início dos anos 50, onde fizeram mais sucesso. Dizem que, durante a exibição dos programas mais populares, as ruas das grandes
cidades ficavam desertas. Os "quiz shows"
também entraram para a história como primeiro grande escândalo televisivo. Foi por
meio desses programas que os EUA, e o mundo, descobriram que a TV podia mentir e
mentia.
No início tudo funcionava bem. Mas um dia
os produtores descobriram que podiam aumentar os índices de audiência se mantivessem no ar os participantes que tinham mais
empatia com o público. Começaram, então, a
orientá-los a respeito de como aparecer na
TV, quando sorrir, como enxugar o suor. Em
1958, a marmelada já era total. Produtores escolhiam os concorrentes que "venceriam" e
lhes passavam as respostas. O escândalo veio à
tona. Foi um deus-nos-acuda. Em 59 não havia um único "quiz
show" no ar nos EUA.
Deve ter sido mesmo chocante para os americanos descobrir
que o lucro era mais importante do que a verdade, que o "american way" e o "fair play" não resistiam a uma pressãozinha dos
patrocinadores. Muitos acharam que tudo aquilo só podia ser
obra de comunistas ateus. Na verdade, aquilo era o "american
way" em estado bruto, só que os americanos não deveriam saber disso.
Silvio Santos também manipula seu show, levando o candidato simpático que está se dando bem para o programa seguinte o
maior número possível de vezes. Se, para isso, for preciso administrar o tempo, o apresentador chega a "mostrar" quanto são 20 segundos. Não sei se Silvio interfere no sorteio das perguntas. Acho que, depois de 58, ninguém o faz, mas não coloco minha mão no fogo.
Evidentemente, o "Show do Milhão", como quase tudo no
SBT, já virou vários produtos. Para participar do programa, é
preciso comprar a "Revista do SBT". Você ainda pode treinar
em casa, se adquirir o CD-ROM do "Show do Milhão". Silvio
Santos sugere que os compradores da revista chantageiem seus
familiares "inteligentes". Ele insta as pessoas a inscreverem parentes "letrados" sem lhes contar nada. Na hipótese de a cartela ser sorteada, só o inscrito pode comparecer ao programa. Ou
ele vai, ou a família perde a chance de ganhar um bom dinheiro.
O raciocínio é impecável; o que choca é a singelez com que Silvio o desenvolve. Lembrou-me um pouco aquela mensagem do
SBT que diz "obrigado por assistir à nossa programação". "Mutatis mutandis" é como se eu titulasse meus artigos com um
"por favor, leia texto abaixo". É honesto sem parecer rebuscado
como "Globo e você, um caso de amor". Há uma sinceridade
que seduz.
Apesar do indiscutível talento de Silvio Santos como comunicador, parte do sucesso de "Show do Milhão" se deve ao próprio formato de "quiz show". Em primeiro
lugar, o programa funciona como uma loteria. Dá a chance de ganhar muito dinheiro.
Mas, diferentemente da loteria, vencer não
depende só de sorte. É aqui que o show ganha caráter de espetáculo. Vejo, na TV, uma
pessoa que poderia ser o meu vizinho -ou
até eu mesmo- diante de perguntas -cujas respostas eu também sei- e com a perspectiva de ganhar R$ 1 milhão -dos quais
eu também preciso. É difícil até mesmo
conceber uma forma mais eficiente de obter
a empatia do telespectador.
Os universitários, com seus trajes a rigor e
capazes de despejar as mais comprometedoras asneiras, dão o toque especial. Tornam-se uma paródia de si mesmos. Candidatos, mesmo nas situações mais difíceis,
hesitam em recorrer aos universitários e
seus arriscados palpites.
Outro ingrediente importante é o fato de
o programa ser um jogo. Todos adoram jogar. E não só seres humanos. Mamíferos em
geral e até algumas aves brincam. Aparentemente, os jogos têm
um papel relevante no aprendizado. Brincadeiras serviriam para transmitir informações não-genéticas a um indivíduo. Assim, apenas espécies cujos pais tomem conta da prole brincam,
e os jogos são mais comuns entre filhotes.
O historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) chegou a
definir o homem como o ser que brinca. Em seu "Homo Ludens", de 1938, Huizinga afirma que o jogo é um traço essencial,
talvez o mais importante, das sociedades humanas. Diferentemente dos outros animais que brincam, o homem é o único que
o faz conscientemente, e durante toda a vida, para obter prazer.
Para Huizinga, todas as atividades humanas, incluindo filosofia, guerra, arte, leis e linguagem, podem ser vistas como o resultado de um jogo ou, para usar uma terminologia mais técnica,
"sub specie ludi" (a título de brincadeira).
Se falamos, é porque alguém resolveu, muito tempo atrás,
brincar com sons e significados. Quando filosofamos, estamos
na verdade jogando com conceitos. Nada, portanto, encanta
mais o homem do que o jogo. Como sugere o título da obra de
Huizinga, o Homo sapiens pode ser substituído pelo Homo ludens. A tese tem subprodutos interessantes. Ela ajuda a explicar por que programas do tipo "Show do Milhão" nos fascinam tanto. Ela também nos dá uma espécie de salvo-conduto
para, agora cientificamente, considerar o mundo uma piada.
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