Coração
de mulher engana. Pelo menos é o que apontam estudos sobre
a incidência de isquemia (insuficiência localizada de irrigação
sangüínea) e de doenças cardiovasculares na população feminina
norte-americana. No país em que as doenças cardíacas são a
principal causa de morte de mulheres, conclusões recentes
revelam que o diagnóstico desse tipo de problema pode ser
mais difícil em pacientes do sexo feminino. Dissimuladas,
as artérias delas podem não revelar nenhuma obstrução aparente
enquanto a paciente está à beira de um infarto. A conclusão
faz parte do estudo Wise (Women's Ischemic Syndrome Evaluation),
conduzido desde 1996 pelo National Heart, Lung and Blood Institute,
nos EUA. Em artigo publicado no mês passado pelo "Journal
of the American College of Cardiology", o Wise alerta para
o fato de que cerca de 3 milhões de norte-americanas portadoras
de doenças coronárias podem apresentar artérias "limpas" -livres
de obstruções-, quando, na verdade, placas de colesterol se
espalharam ao longo da parede arterial em vez de se acumular
formando uma obstrução evidente, como geralmente ocorre nos
homens.
A sutileza das doenças cardiovasculares
femininas está quebrando a cabeça dos cientistas norte-americanos,
que começam a defender abordagens diferenciadas para homens
e mulheres no que diz respeito a esses quadros.
"A avaliação da isquemia em mulheres
representa um único e difícil desafio para os clínicos devido
aos sintomas manifestados, às altas taxas de incapacitação
funcional das pacientes e à baixa incidência de obstrução
arterial se comparada à dos homens", explicam os pesquisadores
do Wise, liderados por Carl J.Pepine, da divisão de medicina
cardiovascular da Universidade da Flórida.
MITO
Some-se ao desafio o fato de que, ao longo das últimas décadas,
foi criado em todo o mundo o mito de que os problemas do coração
são característicos de homens e que as mulheres não precisam
se preocupar com eles. Isso até fazia sentido no tempo em
que elas levavam vidas predominantemente domésticas e podiam
se dedicar com exclusividade à família. "Há 30 anos, quando
uma mulher enfartava, todos os cardiologistas corriam para
ver. Era um extraterrestre, uma coisa fora do normal, um caso
raríssimo", lembra Carlos Alberto Pastore, diretor do Instituto
de Cardiologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e professor
da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).
De lá para cá, muita coisa mudou.
As mulheres se emanciparam, entraram no mercado de trabalho,
conquistaram posições de destaque. Passaram a ser as principais
responsáveis por muitas famílias. Acumularam as cobranças
de profissional competente, mãe responsável, dona-de-casa
eficiente e mulher atenciosa. Apressadas, não têm tempo para
praticar uma atividade física nem para se alimentar adequadamente.
Mais livres, saem à noite, bebem e fumam. Haja coração.
"As mulheres estão se equiparando
aos homens em tudo, inclusive nas doenças", diz Pastore. Segundo
dados da American Heart Association, há dez anos aconteciam
nove infartos em homens para cada caso feminino nos Estados
Unidos. Hoje, são seis casos masculinos para cada quatro mulheres
com doença coronariana. Em 2002, as doenças coronarianas causaram
a morte de 241.622 mulheres nos EUA, enquanto o câncer de
mama respondeu por 41.514 óbitos. Mesmo assim, é o câncer
de mama que mais as preocupa.
De acordo com dados da SBC (Sociedade
Brasileira de Cardiologia), na cidade de São Paulo, a relação
de mortalidade por doença arterial coronária entre homens
e mulheres era de dez homens para cada mulher em 1970. Em
2002, a proporção já era de 2,45 casos masculinos para cada
feminino.
MAUS HÁBITOS
Enquanto o cigarro continua a figurar como um dos grandes
vilões das doenças cardiovasculares, dados da pesquisa Corações
do Brasil, da SBC, apontaram um salto na proporção de mulheres
fumantes no país. Ela passou de 10% para 20,5% da população
na última década. Inversamente, a fatia de homens tabagistas
caiu de 38% para 28%.
Além do tabagismo, o diabetes, a pressão
sangüínea, a idade, o sobrepeso e a obesidade, o sedentarismo
e as taxas elevadas de colesterol e triglicérides figuram
como os fatores de risco para o desenvolvimento de uma doença
cardiovascular, além da hereditariedade. E o ritmo acelerado
de vida serve de mola para os estragos na saúde.
"A mulher de hoje anda sem tempo para
se cuidar, para se curar e para fazer a manutenção do seu
corpo. O estresse interno multiplica o estresse externo, e
ela vira um barril de pólvora com o pavio cada vez mais curto",
comenta Marcos Sleiman Molina, cardiologista e doutorando
em cardiologia pela USP.
"As mais novas fumam mais, os lares
e casamentos desfeitos despejam sobre as mais velhas a carga
integral da família. Muitas vivem com sinais de depressão
incipiente, com o humor prejudicado, sem conseguir ver beleza
nas coisas, fadigadas. A doença cardiovascular é a conseqüência
matemática disso tudo", completa Molina.
FARDO
Adriana Prado, 35, cuida de toda a parte de marketing de um
portal de beleza e de um programa de televisão. Tem quatro
filhos e toma conta dos três mais novos sozinha. Levanta às
5h30 diariamente para fazer o café da manhã e deixar as crianças
na escola. Depois, encara o trabalho corrido de criar e executar
projetos. "É muita pressão", desabafa. Estressada e deprimida,
ela conta que engordou 30 kg em um ano e meio. Um dia, há
dois meses, entrou numa clínica de estética para fazer um
peeling. "Estava me achando horrorosa e sentindo uma dor na
boca do estômago. Uma médica tirou minha pressão, viu que
estava muito alta e chamou o socorro. Foi o que me salvou,
eu estava enfartando", conta. Antes do susto, ela nunca tinha
pensado que pudesse ter algum problema de coração. "Na hora
do desespero, eu só pensava nos meus filhos. Depois que passou,
comecei a me perguntar por que nunca adotei uma postura preventiva,
por que deixei as coisas irem até aquele ponto. Mas, sinceramente,
até isso acontecer, ir a um cardiologista foi algo que nunca
passou pela minha cabeça", confessa.
Como Adriana, muitas mulheres tendem
a se achar "imunes" às doenças cardiovasculares. "O risco
tem sido subdimensionado porque a sintomatologia é mais freqüente
entre os homens", avalia o cardiologista Jacob Szejnfeld,
diretor dos laboratórios Cura, em São Paulo, e professor de
diagnóstico por imagem da Unifesp (Universidade Federal de
São Paulo). Szejnfeld orientou uma tese de doutorado escrita
pela também cardiologista Eliane Fiuza Pinto, em que foi traçada
uma correlação entre a ocorrência de calcificações vasculares
exibidas na mamografia e a incidência de doenças cardiovasculares.
"Toda mulher faz mamografia, mas o
ginecologista geralmente ignora essas calcificações porque
não representam perigo de tumor. Se o ginecologista atentar
para o fato de que aquele pode ser um indício de doença cardiovascular
e encaminhá-la a um cardiologista, isso pode ser valioso",
comenta.
DIAGNÓSTICO DEMORADO
A publicitária Renata Rode, 29, penou durante um ano e meio
para descobrir que sofria de síncope neurocardiovascular -tinha
desmaios repentinos que a impediam de dirigir. "Minha família
vivia preocupada comigo, achando que a todo momento eu poderia
estar caída em qualquer lugar", conta. Os exames de coração
não apontavam nada, e os médicos tendiam a apostar em um problema
neurológico. Foi a 12ª cardiologista que procurou quem conseguiu
diagnosticar o problema corretamente. "Descobrir que era o
coração e ter a chance de me cuidar foi um alívio", afirma
Renata, que está sob medicação e vive sem desmaiar há um ano
e três meses.
"É preciso desfazer essa idéia de
que a mulher não tem problema cardiovascular. Hoje, o volume
de pacientes que chegam aos cardiologistas ainda é predominantemente
masculino. Muitas vêm achando que não têm nada e, quando investigam,
descobrem alguma coisa. É preciso disseminar também entre
as mulheres a cultura preventiva em relação aos problemas
de coração que, de certa forma, já existe entre os homens",
enfatiza Flávio Cure, cardiologista e doutor em cardiologia
pela USP.
Foi justamente inspirada na preocupação
dos homens com quem trabalhava que a executiva Betina Moreira,
37, resolveu fazer seu primeiro check-up, aos 33 anos. O procedimento
é repetido anualmente. "Por conta da minha carreira, adotei
um ritmo de vida alucinante e mergulhei em um universo tipicamente
masculino. A maioria dos meus almoços passaram a ser de negócios,
estava sob constante pressão por resultados, acordava no meio
da noite pensando no projeto que tinha que entregar", relata.
"Foi quando notei que os homens que
trabalhavam comigo tinham uma infra-estrutura doméstica que
eu não tinha. Percebi que estava em desvantagem, que não tinha
tempo para fazer atividade física nem para comer direito.
Decidi me cuidar", conta. Os exames trouxeram tranqüilidade
em relação à saúde, e Betina passou a ser mais cuidadosa com
a alimentação e com a qualidade de vida. "Mudei de empresa
e hoje trabalho menos horas. O mais legal é perceber que nunca
é tarde para começar a se cuidar. Na ansiedade de se colocar
no mercado, a mulher se lança numa luta pesada. Mas as armas
[de homens e mulheres] não são iguais. Para a mulher, o check-up
traz o conforto de ela se sentir cuidada. É muito válido",
ensina.
DIABETES E MENOPAUSA
A cardiologista e médica nuclear Paola Smanio, 40, alerta
para a necessidade de atenção redobrada no caso de mulheres
diabéticas. Em sua tese de doutorado, defendida na Unifesp,
Smanio acompanhou 104 diabéticas que não apresentavam nenhum
sintoma de distúrbio cardíaco.
"Elas foram submetidas a uma série
de exames. Sem que nunca tivessem sentido uma única dor no
peito, 32,5% já tinham as artérias obstruídas."
A chegada da menopausa também deve
desencadear estado de alerta. Com a queda no nível do hormônio
estrógeno no organismo, perde-se grande parte da proteção
natural feminina às doenças cardiovasculares. A regra também
vale para as que, mesmo jovens, sofrem de distúrbios metabólicos
ou têm deficiência dessa substância.
As cardiopatias femininas serão abordadas
no livro "Risco Cardiovascular da Mulher", a ser lançado em
breve pelo cardiologista e professor da Faculdade de Ciências
Médicas de Santos, Hermes Xavier. Destinada aos médicos, a
publicação vai reforçar a necessidade de orientar as mulheres
sobre a importância dos cuidados com o coração.
"Menos da metade das mulheres relata
que foi orientada por médicos sobre o risco de doenças cardiovasculares.
Em verdade e historicamente, subestima-se a real importância
do risco cardiovascular na população feminina quando se compara
ao valor atribuído à população masculina. Essa situação precisa
mudar urgentemente", conclui.
TATIANA DINIZ
da Folha de S.Paulo
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