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Carta da semana
A criança da calçada
(Um conto de natal)
"Quando vi aquela criança
na calçada, observei que ao seu lado havia uma espécie
de vasilha onde as pessoas comovidas, ou com remorso colocavam
algumas moedas, pensavam que assim pagariam suas dividas com
sua consciência e com Deus. No Natal tem destas coisas,
um amor repentino e passageiro... Ela aparentava três
ou quatro anos, barrigudinha, de braços e pernas fininhas,
calada, ali encolhida, alheia a tudo, no seu rostinho sujo
havia um risco que era o caminho das lágrimas que por
ali sempre escorriam, nas narinas as secreções
melequentas de algum resfriado mal curado, denunciando o seu
sofrimento e abandono... se sobreviveu como estará
hoje?
Lembro-me que uma mulher passou por mim ofegante, tinha a
barriga grande já mostrava nove meses de sacrifícios,
talvez inútil sonhos diante deste mundo brutal, ela
olhou para a criança da calçada, sua fisionomia
demonstrou pena e pavor...
A mulher tinha um marido, mas não sabia por onde ele
andava, a ultima noticia dava conta que ele trabalhava num
canavial qualquer neste mundão de Deus, e reclamava
muito das condições por lá, mas certo
dia ele mandou algum dinheiro, foi muito pouco, não
deu para quase nada, a partir daí não se ouviu
falar mais dele, se morreu enterraram por lá mesmo,
mas a mulher desconfia que o safado se enroscou com alguma
rapariga daquelas bandas...
Neste momento a mulher que olhava para a criança, disfarçou,
e num movimento rápido tentou enxugar as lagrimas que
teimosas tentavam escorrer pelo seu rosto, balançou
a cabeça acomodando seus cabelos lisos e finos, e com
os passos devagar e doloridos, caminhava de cabeça
baixa olhando o chão sem ver os buracos e pedras, o
que ela via era o medo do futuro da sua cria ainda na sua
barriga, uma comparação terrível com
aquela criança na beira da calçada.
A mulher foi-se distanciando, e a criança da calçada,
apática, pois a sua pequena vida já tinha lhe
ensinado isso, mantinha o olhar distante para o mundo que
a recebeu um dia de repente, sem perguntar se queria vir,
sem perguntar aonde queria ficar, largou-lhe por ai, mais
indefesa que um pequeno animal, porém a estes Deus
deu o instinto no lugar da inteligência, que sinceramente
foi melhor negócio.
A mulher já distante mostrava-se apenas uma silhueta,
uma forma disforme que já começava a desaparecer
com a tendência no declínio da rua, e assim desapareceu
por completo, e a criança da calçada sem esperanças
levantou-se e começou seu retorno para mais uma noite
de pesadelos junto aos maiores que iriam se juntar na praça,
com medo da polícia, do frio, da chuva, e das sombras
fantasmagóricas da noite.
A noite foi rápida, a criança da calçada
teve sorte, dormiu sossegada, não foi incomodada pelos
maiores, pela polícia, pelos fantasmas, dormiu e sonhou,
teve lindos sonhos, desta vez nenhum pesadelo, apenas sonhos...
O sol começava a bater no seu rostinho sujo, assim
despertava para seu destino: mais um dia na calçada,
pedir esmolas aos transeuntes, uns olhavam com desdém,
outros falavam qualquer coisa inaudível, coisa boa
não poderia ser, ou se fosse era apenas de pena, e
a criança da calçada barrigudinha, ficou ali
de cabecinha baixa, não tinha coragem de olhar para
o alto, nele estava seu futuro, e não via nada...
A noite para a mulher da barriga grande, foi difícil,
veio a dor do parto, seu barraco pobre não tinha quase
nada, tentou não gritar, mas foi impossível,
ouviram...Correram para socorre-la, era noite de Natal. A
cidade lá embaixo brilhava como nunca, um vento fraco
corria entre as ruelas, seu presente chegou, um lindo menino
forte como nunca se viu, todos sorriam, alguns choravam emocionados,
todas as mulheres radiantes, andavam para cá e para
lá, e a noticia corria que a criança da mulher
havia nascido, um menino que prometia ser valente.
Assim que passou todos os atropelos do parto, a mulher desceu
a rua devagar, outra esquina, subiu outra rua, e tornou a
descer, a descer...E a criança da calçada de
repente sentiu que pegaram na sua mãozinha, devagar,
suave, era a mulher da barriga grande, com o filho no colo
e disse-lhe: - Vem... Vamos...
Agora a criança da calçada iria sobreviver,
junto com seu “irmão” que nasceu na NOITE
DE NATAL...",
Rivaldo Roberto Ribeiro
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