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28/03/2008
Carta da semana
Produtor musical conta um pouco mais sobre o Charles da Flauta
“Ao ouvir
o comentário de Gilberto Dimenstein na Rádio CBN recebi uma
ótima notícia e outra péssima, porém já esperada. A ótima
foi saber que o Charles da Flauta ainda está vivo, apesar
de tudo, e melhor ainda, se mostrando novamente disposto a
sair dessa vida na qual se meteu. A péssima apenas piora o
que eu já sabia. Já sabia que ele estava perdido nas ruas
e muito envolvido com crack, só não sabia que está
com tuberculose, e ainda por cima com pneumonia.
Quando conheci o Charles, eu estava
me preparando para ser produtor musical de um bar que se inauguraria
na Lapa, em agosto de 2005. Por indicação de
outros músicos, fui atrás dele no Café
du Réve, mais conhecido como bar do Cidão, que
fica na rua Deputado Lacerda Franco e é um reduto de
choro tradicional, um bar onde grandes músicos se encontram
madrugada adentro, alguns, após saírem de seus
shows na cidade. Era uma terça-feira e foi a última
de uma temporada que acabou esvaziada. Naquela noite, estavam
ali, para ouvir o Charles, acompanhado de um violonista, apenas
eu e uma produtora do SESC, que estava lá pra acertar
detalhes de uma apresentação deles. Na falta
de público, os dois passaram a "improvisar"
o que poderia ser o repertório da apresentação
no SESC, que estava sendo negociada. Cheguei sozinho, me apresentei,
e fiquei ali no balcão, bebericando, ouvindo os trechos
de música que eles tocavam pra pensar no repertório,
e conversando com o Cidão a respeito do Charles. Naquela
noite, fui conhecer um grande músico e conheci dois,
pois ao violão estava o Alessandro Penezzi. Foi impressionante,
para mim, ouvir a música que eles faziam de improviso.
"Podemos tocar aquela lá..." e saiam tocando
maravilhosamente.
A temporada no Cidão acabou,
por falta de público. Um tempo depois, o Charles tocou
na primeira quinta de funcionamento do Magnólia Villa
Bar, onde eu fui produtor musical por cerca de um ano. Depois,
começou uma temporada aos domingos, que deixaria qualquer
amante da música enlouquecido pela destreza e musicalidade
que ele tinha. Mais ainda, quando algum cantor ou cantora
vinha dar canja, ele mostrava algo que realmente o diferenciava
como músico de grande capacidade melódica: o
improviso. Ao acompanhar um cantor, ele se dedicava aos floreios,
e não mais à melodia principal, e a improvisação
desses floreios, dessas frases musicais inseridas nas brechas
da melodia principal, é que de fato mostrava que ele
era muito provavelmente um candidato a gênio musical.
Mas a temporada nesse bar também não foi fácil.
O bar não deslanchou tão rápido, e os
domingos eram vazios. Alguns poucos domingos tiveram um público
um pouco maior e mais condizente com aquela música.
Mas sei que aquela música também merecia um
espaço muito mais nobre do que o palco de um bar, ainda
que o choro combine com boemia. O Charles se apresentava acompanhado
do pai ao violão e de um irmão, Alex, no cavaquinho.
Durou alguns poucos meses, e o bar teve que interromper, para
tentar outras atrações que atraíssem
público.
Desde então, encontrei o Charles
ainda algumas poucas vezes, mas acabei sabendo que alguns
meses depois, já no início de 2006, ele tinha
ido parar na rua. O irmão continuou se apresentando
algumas vezes no bar, com outros grupos, e foi por ele que
soube de mais notícias do Charles naquele ano. Entre
o fim de 2006 e início de 2007, os dois irmãos
começaram a gravar um disco, que nunca foi terminado,
e incluía uma homenagem a Carlos Poyares, outro grande
flautista brasileiro.
Já estava sem notícias
há muito tempo, até ouvir o comentário
do Dimenstein na rádio. Quando você começou
a falar, antes de dizer o nome dele, e por saber que tipo
de assunto o Dimenstein geralmente trata, eu logo adivinhei
que falava do Charles. Por muito tempo pensei em como poderia
ajudá-lo, mas infelizmente, acho que está fora
do meu alcance. Não trabalho mais com música
e não tenho condições financeiras de
ajudá-lo. É um talento desperdiçado,
por falta de apoio e também, talvez, por falta de orientação
correta na vida. Acho que ele precisa de apoio psicológico
para vencer algumas barreiras que ele mesmo se impõe.
Chegar a tocar flauta como ele toca(va), já foi uma
vitória, se considerarmos a história da vida
dele. Mas a própria resposta que ele deu à sua
entrevista, mostra um lado dessas barreiras e questões
dele, que eu percebi no curto tempo em que trabalhei com ele
no bar.
"As pessoas pensavam que eu estava
fora do Brasil e deixaram de me procurar. Fiquei desanimado,
comecei a não ir mais para a escola e a usar drogas.
Experimentei crack e me perdi"
Ele mostra o quanto dependia dessa
atenção, ou o quanto a atenção
repentina que teve aos 14 anos o estragou. Quando pensaram
que ele estava fora, deixaram de procurá-lo. Ele apareceu
tanto na televisão naquela época, que talvez
ele tenha pensado que o sucesso chegara pra ficar. Subiu e
caiu muito rápido, e isso mexeu com ele. Até
quando ele esteve no Magnólia, dava pra perceber o
quanto ele precisava de atenção e apoio, ou
o quanto ele mostrava uma certa imaturidade pra lidar com
a vida.
Sempre que penso nele, eu me
sinto um pouco triste por ter ficado tão perto de poder
ter ajudado na recuperação dele como músico,
pois quando o convidei para tocar no Magnólia, acabei
dando mais um espaço para ele, mas que infelizmente
não foi um espaço que teve condições
de dar nem uma renda mínima para o músico e
nem projeção suficiente que o reerguesse. E
ele estava em um momento de volta à música,
pois esteve afastado por alguns anos. Enfim, escrevi pra contar
um pouco da história recente dele, um pouco do que
sei. E porque sempre que ouço falar dele, fico torcendo
pra que seja boa notícia e que ele volte a tocar.”
Fábio Pazzini
- fabio.pazzini@gmail.com
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