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Depois de perder as duas mãos,
o pianista João Carlos Martins, um dos mais famosos
intérpretes de Bach, acabou descobrindo harmonia na
Febem. "Estou dando novo significado à minha vida."
Sua vida tinha mesmo tudo para perder
o sentido. Num roteiro digno daqueles inverossímeis
filmes de bruxaria, uma espécie de maldição
abateu-se sobre a mão direita do pianista. Os dedos
foram, aos poucos, quase em câmara lenta, perdendo o
movimento. Mas ele não desistiu: imergiu em infindáveis
ensaios para executar obras apenas com a mão esquerda
e voltou aos palcos diante de platéias perplexas.
O pior estava por vir, como se a maldição
não se desse por satisfeita. Um tumor inutilizou, neste
ano, também a sua mão esquerda. "Não
sobrou nada", resigna-se. Impedido de tirar melodias
das teclas, ele tenta aprender a viver em harmonia com a música.
Depois de assumir a direção
de uma faculdade de música, o pianista das mãos
irrecuperáveis resolveu reger pessoas tidas, por muitos,
como integralmente irrecuperáveis - e cujas mãos
serviram para esmurrar. Passou a dar aulas a adolescentes
da Febem. "É incrível o prazer de vê-los
descobrindo os sons e, com isso, descobrindo a si mesmos."
Para que se conheçam e se valorizem,
os adolescentes são ensinados, nas primeiras aulas,
a tirar sons do próprio corpo, tão acostumados
a bater e a apanhar. "Eles aprendem que a música
está em qualquer lugar, a começar de si próprios",
diz João Carlos Martins, que, entusiasmado com a experiência,
procura talentos perdidos.
Como é um óbvio roteiro
cinematográfico, a maldição das mãos
de João Carlos Martins acabou mesmo virando filme -
mas totalmente verossímil, sem nada de ficção.
Para o começo do próximo ano, está previsto
que entre em circuito comercial nos Estados Unidos e na Europa
um documentário sobre a luta desesperada de João
Carlos Martins.
Com a ajuda do maestro Julio Medaglia,
João Carlos Martins estuda quatro horas por dia e quer
voltar aos palcos, desta vez como regente. Se já não
prestam para tirar as notas do piano, os dedos conseguem,
pelo menos, segurar a batuta - a doce vingança contra
a "maldição". Foram-se as mãos,
ficou a música.
Coluna originalmente
publicada no jornal Folha de S. Paulo, às quartas-feiras
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