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Formados
em ciência da computação em São
Paulo, três amigos elaboraram um protesto bem-humorado
contra o acúmulo de lixo da internet, cansados das
bobagens e obviedades dos blogs -um besteirol agravado ainda
mais com a disseminação do Twitter. A brincadeira
acabou na invenção de uma privada inteligente.
Treinados em desenvolvimento de programas para a internet,
Arthur Lima, Daniel Dias e Eduardo Alves moram juntos e, nas
horas vagas, tocam um laboratório, em que pedem colaboração
a colegas ou a qualquer um que deseje participar de um experimento
-deram o nome a isso de "colaboratório".
Nesse "colaboratório", desenvolveu-se um
sistema de sensores conectados à privada capaz de acompanhar
o movimento da água.
Antes mesmo que o indivíduo saia do banheiro, o ato
fisiológico estará registrado, em palavras,
numa página da internet, acessível, portanto,
a qualquer um em qualquer parte do mundo. "Como somos
favoráveis ao software livre, deixamos o código
aberto", brinca Daniel Dias, que resolveu batizar a invenção
de "Shit Happens".
A brincadeira é um jeito de tentar entender, seriamente,
a decisão anunciada na semana passada de tornar obrigatório
um novo exame para aprovação do ensino médio.
É uma das mais importantes decisões lançadas
nos últimos tempos para tentar reduzir o lixo informativo
que atormenta desnecessariamente os jovens -e aposto que terá
impacto no jornalismo.
A indicação do Enem -até agora só
um mecanismo para entrada nas faculdades -como prova obrigatória
para a conclusão do ensino médio significa mais
do que mudar o currículo das escolas. O essencial é
a mudança do olhar sobre como transmitir conhecimento
aos jovens. Se eu pudesse resumir em poucas palavras os documentos
divulgados na semana passada sobre o que será o Enem,
diria o seguinte: os estudantes serão (ou deveriam
ser) treinados para aprender a selecionar o que é relevante,
conectando as informações ao cotidiano.
Explicando melhor: noções de química,
física, biologia e história devem ser usadas
para entender, por exemplo, o aquecimento global. O que se
pretende colocar no ralo são as informações
que não fazem sentido porque são apresentadas
isoladamente -é algo tão inútil quanto
o jovem que, no Twitter, posta algo como "escovei os
dentes", "acordei", "jantei" -o tipo
de inutilidade que acabou gerando a invenção
do "Shit Happens". Mas por que, afinal, a mudança
do currículo escolar terá impacto no jornalismo?
À medida que se valorize o cotidiano para concatenar
as diversas matérias e o vestibular dê cada vez
mais ênfase a esse olhar, a boa educação
será avaliada, entre outras coisas, pela habilidade
de os professores lidarem com a comunicação.
Um fato exposto no noticiário não será
usado apenas ocasionalmente num trabalho escolar, como já
ocorre. Será uma das principais matérias-primas
para as aulas. Quanto melhor um meio de comunicação
souber contextualizar um fato, terá mais chance de
virar hábito dos leitores, ouvintes e telespectadores.
Existe aqui um encontro com o jornalismo -até porque
a imprensa também é vítima e, simultaneamente,
vilã no efeito "Shit Happens". Há
uma crescente torrente de informações que dificulta
a capacidade de seleção do que é relevante.
A sobrevivência dos jornais estará muito mais
vinculada à sua capacidade de dizer o que importa,
com precisão e contexto, do que a dar furos.
A conclusão disso pode parecer hoje um pouco estranha,
mas com o tempo será rotina. Os meios de comunicação
vão absorver um pouco do jeito de ser da escola, mais
preocupados com o didatismo e processos cognitivos de seus
leitores, ouvintes ou telespectadores.
Será ainda mais disseminada, na internet, a possibilidade
de tirar dúvidas sobre as matérias ou discutir
diretamente com os repórteres e colunistas -na prática
é um ensino a distância. Ao mesmo tempo, as escolas
terão ingredientes de Redação de jornal,
tamanha a necessidade de os professores e alunos lidarem com
as notícias como eixo estruturante do currículo
e usarem recursos de comunicação para elaborar
trabalhos ou pesquisas.
Nada disso será nem rápido nem fácil.
Se os docentes já não sabem lidar direito (para
dizer o mínimo) com o atual currículo, imagine
um plano de aula montado em eixos transversais, inter e multidisciplinares.
As escolas de elite já vêm realizando, há
muito tempo, esse tipo de inovação, com ótimos
resultados isolados -faltava a mudança do vestibular
para que tivessem mais estímulo. A imprensa terá
de aprender a ser mais didática e colaborativa com
seus leitores, além de investir em menos e mais importantes
notícias.
No final, tanto o jornalismo como a escola estarão
melhores -e muita notícia e livro escolar irão
diretamente para a privada.
PS: Dou outros detalhes neste link
sobre o funcionamento do "Shit Happens".
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, editoria Cotidiano.
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