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O
exemplo de São Carlos, que reduziu os homicídios
praticados por adolescentes, mostra que o ECA deve ser aplicado,
e não modificado
Como seria dizer que um remédio não é
bom para uma doença ou, ainda, que é necessário
dar uma dose maior para que ele produza o seu efeito antes
mesmo que ele tenha sido administrado ao doente? Essa é
a imagem que deveria vir às nossas cabeças quando
se fala em mudança do ECA (Estatuto da Criança
e do Adolescente) ou em redução da idade penal.
Nem bem colocamos em prática os princípios contidos
nessa lei, de 1990, nem experimentamos executar suas proposições
pensadas e discutidas por quem atua na área e somos
interpelados por aqueles que apenas a conhecem pelo "ouvi
dizer" e, sob clima de comoção, querem
propor mudanças ou estabelecer critérios mais
duros na sua aplicação.
Solidarizar-se com a tragédia e a barbárie vivida
pelo pequeno João Hélio e sua família
é o mínimo que se espera de um cidadão
consciente. Indignação é, por certo,
atitude ainda mais adequada. O que fazer, porém, diante
de fatos como esse exige de nós uma reflexão
séria e a busca de uma solução consistente.
Para continuar na comparação acima, não
é a receita que cura o paciente, mas a administração
regular do medicamento.
O adolescente é impulsivo, imprevisível, ousado.
Isso nós já conhecemos e sabemos que faz parte
das suas qualidades e também está presente nos
seus erros. Por não acreditar no impossível,
ele é capaz de fazer malabarismos impensáveis
sobre uma bicicleta, um skate ou um par de patins.
Bem orientado, é capaz de canalizar tais atributos
para grandes realizações. O que vemos muitas
vezes, porém, são oportunidades negadas e uma
contínua exclusão. Excluído da família,
da escola, do lazer, da profissionalização,
do trabalho e, não raro, até da sociedade pelo
seu modo irreverente de se vestir e de andar.
Negamos as oportunidades, os deixamos à mercê
do consumismo e da mídia que banaliza a violência
e os valores morais e, quando caminham em direção
ao delito, mais uma vez o que nos ocorre é a violação
do direito.
O ECA contempla a situação do jovem que errou
e, pedagogicamente, propõe um itinerário que
o ajude a se reorientar de forma positiva. Serviços
comunitários, liberdade assistida e semiliberdade são
oportunidades que devem levá-lo a refletir sobre sua
conduta antes que tome gosto pelos enganos do mundo da criminalidade.
Salvo raras exceções, programas de medidas socioeducativas
inexistem ou têm péssima qualidade. Não
investimos na prevenção e queremos relegar a
responsabilidade à internação.
Chame-se por qualquer nome (Degase, Febem, Caje etc.) esses
centros que se regem pelas mesmas leis dos cárceres
e presídios para adultos. Não será o
tempo que os jovens permanecem neles que irá tirá-los
do mundo da criminalidade. Serão as oportunidades oferecidas
e o que fizermos para que eles não precisem chegar
lá.
São Carlos, no interior do Estado de São Paulo,
vem apostando nessa fórmula. Em 2001, criou o NAI (Núcleo
de Atendimento Integrado) e tirou do papel o art. 88, inciso
V, do ECA. Começou a trabalhar na integração
entre Estado e município, Judiciário, segurança
pública, Ministério Público, assistência
social, saúde, educação, ONGs e família.
Uma ação ágil na intervenção
junto ao adolescente autor de ato infracional, que se inicia
a partir de pequenos desvios, que tem como centro da sua atenção
a pessoa do adolescente, e não o delito praticado,
tem trazido bons resultados.
A cidade, que em 1998 teve 15 homicídios praticados
por adolescentes, viu cair este índice para no máximo
dois por ano entre 2001 e 2005 e nenhum em 2006. O índice
de reincidência de São Carlos fica em torno de
4%, contra uma média de 30% quando apenas há
procedimentos convencionais de internação. Além
disso, teve reduzido em 90% o número de internos na
Febem quando comparado a municípios de igual porte.
A experiência, que busca sempre novos parceiros para
melhorar ainda mais, é exemplo concreto de que o ECA
precisa ser aplicado, e não modificado. Para multiplicá-la
pelo país, basta vontade política de governantes,
pois recursos financeiros não faltam -o interno da
Febem, por exemplo, custa quatro a cinco vezes mais que um
jovem atendido pelo NAI.
Além do mais, nenhum país resolveu o problema
pelo endurecimento das leis. Reduzir a idade penal é
ilusório, inócuo e contraproducente. Investir
em educação, oportunidades e atenção
é mais barato, eficiente e humano.
NEWTON LIMA NETO , 53, engenheiro
químico, doutor em engenharia, é prefeito reeleito
de São Carlos. Foi reitor da Universidade Federal de
São Carlos de 1992 a 1996.
AGNALDO SOARES LIMA , 46, padre salesiano, é presidente
do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente de São Carlos. Foi diretor do NAI/São
Carlos desde sua implantação até 2004.
Artigo publicado na Folha de S.Paulo.
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