Natureza e objetivo dessa minuta
Em setembro de 2007, por orientação do Presidente
da República, iniciei discussões com as cinco
maiores centrais sindicais (CUT, Força Sindical, UGT,
CGTB, NCST e, desde dezembro, CTB), a respeito das possíveis
diretrizes de um acordo nacional que guie a reforma das relações
entre o trabalho e o capital no Brasil. Essa iniciativa nasceu
da convicção (aprofundada em seguida nessa minuta)
de que a reconstrução de nosso modelo de desenvolvimento
no rumo da ampliação de oportunidades, do crescimento
econômico socialmente includente e da escalada de produtividade
exige revisão abrangente e ousada das relações
entre o trabalho e o capital. Não temos experiência
de tal esforço desde o período de Getúlio
Vargas, quando se formou a legislação ainda
em vigor.
As discussões com as centrais - ora com elas separadamente,
ora com elas em conjunto - prosseguiram à luz de um
objetivo prático: buscar não a unanimidade,
mas uma convergência preponderante de opinião.
O espírito foi o de enfrentar sem rodeios os problemas
mais difíceis, saindo do plano das abstrações
ideológicas e das palavras de ordem para o das preocupações
concretas e pontuais. Três foram os temas escolhidos
como fulcros da discussão: a diminuição
da informalidade, a reversão da queda da participação
dos salários na renda nacional e a reforma do regime
sindical.
Os entendimentos com as centrais sindicais já começam
a ser complementados por encontros com lideranças empresariais:
tanto com pequenos grupos de grandes empresários como
com dirigentes das confederações patronais.
Se o projeto articulado puder contar também com o apoio
de parte expressiva do empresariado terá galgado passo
importante para ser abraçado pela nação
e para traduzir-se em lei.
O propósito final é definir ideário
objetivo que oriente agenda legislativa. Alguns dos pontos
da convergência retratada aqui (sobretudo no quesito
do regime sindical) já estão em andamento no
Congresso Nacional. Esse texto os resgata e os reinterpreta
como fragmentos de projeto transformador mais abrangente.
Sei que algo das concordâncias aparentes de agora tenderá
a se dissipar à medida que as diretrizes forem colocadas
em debate público e as idéias se aproximarem
do momento de sua efetivação. Confio, porém,
que muito da concordância sobreviverá a essa
mudança. Pode parecer surpreendente que temas tão
controvertidos - e tão marcados por mistura potencialmente
explosiva de interesses e de ideologias - se prestem a convergência
tão ampla e pormenorizada quanto a esboçada
nesse memorando. A oportunidade para construir tal convergência
não resulta, porém, do trabalho de agora; decorre
de uma decantação - dentro do movimento sindical
e no país como um todo - ao longo de muitos anos. As
propostas resumidas nessa minuta apenas explicitam o desfecho
dessa experiência anterior.
Premissas dessa iniciativa
O esforço aqui retratado nasce da convicção
de que nossa economia corre o risco de ficar presa, no mundo,
entre economias de trabalho barato e economias de tecnologia
(e de produtividade) altas. Risco agravado porque algumas
das economias de trabalho barato se estão tornando,
setorialmente, economias de produtividade alta. Um dos nossos
maiores interesses nacionais é escapar dessa prensa
do lado alto -de valorização do trabalho e de
escalada de produtividade -, não do lado baixo, de
produtividade deprimida e salários aviltados. Não
temos futuro como uma China com menos gente.
Por outro lado, o regime de trabalho criado pelo regime de
Getúlio Vargas padece, apesar de seus muitos efeitos
benéficos para os trabalhadores ao longo da segunda
metade do século passado, de dois defeitos graves,
que exigem reparo. O primeiro e o mais fundamental defeito
é que nunca incluiu, e ainda não inclui, a maioria
dos trabalhadores brasileiros. É, e sempre foi, regime
para a minoria. A maioria não só está
fora como está também condenada à indignidade,
à injustiça e à insegurança do
trabalho informal. A esperança de que a maioria fosse
aos poucos incorporada a suas regras se foi aos poucos esvaindo.
E o modelo institucional estabelecido das relações
entre o capital e o trabalho, em vez de ser parte da solução,
revelou-se ser parte do problema.
O segundo defeito é que, mesmo para essa minoria,
o regime vigente assegura representação sindical
oficial sem garantir representação vigorosa,
independente e, portanto, legítima. Um sistema que
exalta a unicidade sindical evoluiu paradoxalmente para proliferação
exuberante de sindicatos - muitos representativos de fato
e, muitos outros, imposturas de representação.
O enfraquecimento da representação é
uma vulnerabilidade e uma ameaça. A exclusão
da maioria é um veneno.
Nenhum dos dois discursos predominantes no Brasil de hoje
a respeito das relações entre trabalho e capital
basta para alcançar os objetivos sugeridos por essas
constatações. De um lado, há o discurso
da " flexibilização " das relações
de trabalho, identificado pelos trabalhadores como eufemismo
para descrever a corrosão de seus direitos. De outro
lado, há o discurso do direito adquirido: a defesa
renhida do regime da CLT como baluarte contra a campanha para
flexibilizar. Pode, a curto prazo, ajudar a resguardar dos
trabalhadores entrincheirados nas partes mais capitalizadas
da economia. Não aproveita, porém, os outros
- a grande maioria. O problema está em descobrir como
soerguer os assalariados que estão fora dos setores
intensivos em capital sem minar a posição dos
que estão dentro desses setores.
Para alcançar tais finalidades, não basta defender
a estrutura legal existente. É preciso inovar nessa
estrutura, fazendo obra de inovação institucional
- como fez, em outras circunstâncias, com outros meios
e com outros propósitos, Getúlio Vargas.
Resgatar a maioria da economia informal
Difícil dizer que parte de força de
trabalho atua na economia informal, trabalhando sem carteira
assinada, sem a proteção ou a disciplina da
lei. As ambiguidades da classificação associam-se
às incertezas da contagem para dificultar a conclusão.
Não há dúvida, porém, de tratar-se
de perto da metade da população economicamente
ativa do país. Essa é uma calamidade brasileira
- econômica, social e moral. Resgatar essa metade da
informalidade, com toda a dimensão e rapidez possíveis,
é prioridade de qualquer projeto que pretenda reconstruir
as relações entre trabalho e capital no Brasil
sob o signo da reconciliação entre o desenvolvimento
e a justica.
São os seguintes os componentes da convergência
que começa a formar-se a respeito desse tema.
1. Como preliminar, entendemos que parte da informalidade
tem a ver com fraude do regime legal e tributário.
E fraude precisa ser combatida agressivamente, à parte
qualquer mudança na estrutura de custos, de incentivos
e de oportunidades para empregar e para trabalhar.
2. Há dois grandes aspectos do problema da informalidade:
política econômica e desoneração
da folha de salários.
Na política econômica, é preciso distinguir
entre política macroeconômica - sobretudo monetária
- e política microeconômica - a " política
industrial " voltada para a multidão de pequenos
empreendimentos que vivem perto da fronteira entre formalidade
e informalidade.
Os participantes em nossas discussões concordam que
uma política monetária que mantém o juro
real acima da taxa média de retorno dos negócios
é prejudicial a qualquer esforço para tirar
a maioria da informalidade, ainda que se justifique por outras
razões. Igualmente concordam, porém, que o trato
dessa questão está fora de nossa jurisdição
e só inibiria o avanço da convergência
que estamos construindo.
Há, porém, toda a razão para conceber
uma política industrial includente, voltada para o
mundo dos empreendimentos emergentes, como parte da estratégia
para diminuir a informalidade. Os elementos de tal política
estão sendo discutidas com outros interlocutures. São
três os meios que a definem.
O primeiro elemento - de aconselhamento gerencial, de formação
de quadros e de práticas - costuma ser, no mundo todo,
o mais difícil. É, porém, a área
em que o Brasil mais avançou, por conta do papel histórico
do Sebrae. Ao Sebrae, porém, faltam braço financeiro
e braço tecnológico. Daí os outros dois
elementos dessa política industrial.
O segundo elemento é o financeiro: trabalhar com o
Banco do Brasil, com a Caixa Econômica Federal, com
o BNDES, com o Banco do Nordeste e com o Banco da Amazônia
para ampliar, rapida e dramaticamente, o crédito ao
pequeno produtor. É objetivo que exige baixa de custos,
e, portanto, padronização de práticas,
nos empréstimos.
O terceiro elemento é o tecnológico: atuar
junto aos Ministérios de Ciência e Tecnologia
e de Indústria e Comércio para organizar uma
Empraba industrial, vocacionada para ajudar os emprendimentos
emergentes. Essa Embrapa industrial não precisa (nem
deve) ser empresa unitária, como a própria Embrapa.
Deve ser composta por rede que aglomere e amplie as instituições
federais e estaduais que já adaptam e transferem tecnologia
- e perícia tecnológica -às pequenas
empresas. O significado dessa iniciativa pode ser enorme em
economia caracterizada como a nossa pela avassaladora predominância
de empresas de pequena escala. O empreendedorismo desse mundo
demonstra misteriosa vitalidade em meio a condições
inóspitas. Equipada com os instrumentos de que precisa,
pode revelar-se formidável dínamo de crescimento.
3. Nossas discussões a respeito da diminuição
da informalidade focalizaram sobretudo o outro lado da questão:
a desoneração da folha de salários. Se
não se deve exagerar a eficácia da desoneração
para diminuir a informalidade (já que há outras
causas e outros constrangimentos), também não
se lhe deve negar importância. Parece mais plausível
avaliá-la como fator de peso substancial ainda que
incerto.
Três grandes camadas de ônus incidem hoje sobre
a folha salarial. A primeira camada é de acessórios,
de " penduricalhos " . Nessa categoria está,
por exemplo, o sistema S e o salário educação.
Houve consenso de que devem ser financiados esses acessórios
- quando seu financiamento se justificar - pelos impostos
gerais. Devem, portanto, desde já deixar de incidir
sobre a folha.
A terceira camada é a dos benefícios diretos
do trabalhador: fazem parte do que se pode chamar um quase-salário.
Nas nossas discussões prevaleceu a tese de que esses
benefícios devem ficar, ao menos por enquanto, na folha.
O debate centrou-se na segunda camada: a contribuição
patronal à previdência do empregado. E obedeceu
a um princípio de prudência: que o mecanismo
da desoneração deve ser separado tanto quanto
possível dos debates a respeito das reformas previdenciária
e tributário. Do contrário, não avançará.
Quanto à relação entre nossas propostas
e a reforma previdneciária, o objetivo prático
é que a mudança da base de financiamento do
euqivalente à contibuição patronal seja
relativamente neutra no impacto sobre o montante da receita
que a previdência recebe.
Começamos por onde costuma iniciar a discussão
hoje: com a idéia de que a folha de salários
deve ser substituída pelo faturamento como base para
o financiamento da previdência (no que diz respeito
à parte hoje coberta pela contribuição
patronal). Nossas longas discussões, porém,
acabaram por considerar preocupantes os dois maiores defeitos
dessa fórmula intermediária. O primeiro defeito
é a incidência desigual sobre as empresas - maior
sobre as empresas intensivas em capital. Essas empresas empregam
relativamente menos, mas representam vanguarda na escalada
de produtividade. O segundo defeito é compartilhar
aspectos de um imposto declaratório e ser, portanto,
suscetível de evasão fraudulenta.
A partir dessas constatações, a discussão
evoluiu para solução mais radical: o financiamento
pelos impostos gerais da receita gerada hoje pela segunda
camada de ônus - os ônus previdenciários
- sobre a folha de salários. Ou mais precisamente:
seu financiamento pelo imposto mais neutro - menos distorcivo
de preços relativos - que existir em nosso modelo tributário
no momento em que se fizer a mudança.
Entre nós, chegou a se falar em base CPMF. Com o desparecimento
desse imposto, há dois candidatos: um imposto geral,
de alíquota única, sobre transações
financeiras ou o imposto sobre o valor agregado, se o Brasil
seguir o exemplo de muitos outros países e reorganizar
em torno do IVA seu sistema tributário.
Uma corrente importante de opinão entre nós
continua a preferir a a solução intermediária,
de substituir folha se salários pelo faturamente como
base para cobrar a parte patronal da contribuição
previdenciária, em vez de optar pela solução
mais radical que se acaba de descrever. O peso relativamente
maior que incidiria, por consequência dessa fórmula,
sobre as empresas mais intensivas em capital, e, portanto,
poupadoras de mão de obra, seria vantagem, não
defeito, do ponto de vista dos que defendem os interesses
do trabalhador. E a atribuição de parte do ônus
do financiamento da previdencia aos impostos gerais, exporia
a previdência a críticas e ataques. A corrente
predominante de opinião entre nós não
julgou persuasivas essas objeções.
Regime que inibe o acúmulo de tecnologia e a aceleração
da inovação tecnológica na produção
pode beneficiar parte da força de trabalho a curto
prazo. Prejudica, porém, os trabalhadores como um todo
a médio prazo. São eles os maiores beneficiários
do aumento da produtividade (desde que fortalecidos os mecanismos
institucionais para que se possa apropriar de parte do excedente
econômico) e as maiores vítimas de estancamento
na elevação da produtividade.
As grandes decisões nacionais sobre o futuro do trabalho
e da previdencia não devem ser tomadas com base no
temor do poder dos sofismas. Temos de confiar na força
da razão para demonstrar que o que é melhor
de fato seja como tal entendido pela maioria de nossos concidadãos.
E para assegurar que progresso na organização
do trabalho não sirva de pretexto a regresso no ordenamento
da previdência.
Os dirigentes sindicais e os líderes empresariais
consultados não menosprezam os dissabores dessa reorientação.
A maior parte, porém, vê nela a maneira mais
direta, clara e corajosa de resolver problema que ameaça
nosso futuro nacional.
Reversão da queda da participação
dos salários na renda nacional
Há cerca de meio século cai a participação
dos salários na renda nacional. É longe de ser
tendência universal no mundo. Diferem radicalmente as
sociedades contemporâneas, mesmo quando comparadas em
nível semelhante de desenvolvimento, na maneira de
dividir a renda nacional entre o trabalho e o capital. O decréscimo
duradouro da parte da renda que no Brasil vai ao fator trabalho
opera como causa de desigualdadede poderosa demais para ser
plenamente contrabalançada por qualquer política
social. E ameaça nossa capacidade de escapar pelo alto
- da escalada de produtividade e da valorização
do trabalho - da prensa entre economias de trabalho barato
e economias de produtividade alta em que nos eoncontramos.
As limitações no aumento da produtividade do
trabalho não bastam para explicar esse resultado. Há
muito tempo que a subida o do salário real no Brasil
costuma ficar aquém dos avanços da produtividade.
Para reverter a queda da participação dos salários
na renda nacional, não bastam políticas que
procuram influenciar o salário nominal, como sobretudo
a política do salário mínimo. Tais políticas
têm eficácia restrita. São facilmente
anuladas por inflação quando não barradas
por política monetária comprometida em manter
a estabilidade da moeda. Vargas instituiu a política
do salário mínimo, mas o fez, como parte integrante
e acessória de uma construção institucional.
A nós falta construção dessa ordem. E,
na falta dela, os instrumentos que influenciam o salário
nominal acabam por se mostrar insuficientes.
Em nossas discussões, partimos da constatação
das enormes desigualdades entre os salários no Brasil:
uma das espécies mais graves e menos comentadas de
desigualdade entre nós. Por conta dessa realidade,
concluímos que, em primeira etapa, as iniciativas institucionais
(e tributárias) destinadas a reverter a queda da participação
dos salários na renda do país devem ser distintas
para diferentes níveis da pirâmide salarial.
Na base dessa pirâmide, o primeiro objetivo precisa
ser assegurar que o regime tributário seja pelo menos
neutro: que pare de castigar quem emprega e qualifica o trabalhador
mais pobre e menos qualificado. Para a etapa seguinte, o alvo
passará a ser tornar positivo o regime, por meio de
incentivos tributários ao emprego e à qualificação
desses assalariados.
Para o meio da hierarquia salarial, iniciativa prioritária
seria proteger e representar os trabalhadores temporários
ou terceirizados. No Brasil, como em todo mundo, representam
parcela crescente da força de trabalho. É a
mudança dos paradigmas de produção, não
apenas o enfraquecimento da posição institucional
dos trabalhadores, o que também explica essa tendencia.
A primazia do trabalho permanente, nos moldes em que o conhecemos,
teve base segura em determinada forma de produção:
a produção em grande escala de bens e serviços
padronizados, por meio de maquinária e processos produtivos
rígidos, mão de obra semi-especializada e relações
de trabalho muito hierárquicas e muito especializadas.
É o que os especialistas costumam chamar o Fordismo.
O cerne de nosso sistema industrial, instaurado no sudeste
do país no curso do século 20, é um Fordismo
já tardio. Alcança padrões de excelencia
fabril. Mantém-se, porém, competitivo à
base de restrição de retornos ao fator trabalho.
Com isso dificulta nossa saída da prensa entre economias
de trabalho barato e economias de produtividade elevada, do
lado alto - de escalada de produtividade e de valorização
e qualificação do trabalho -, não do
lado baixo - de aviltamento salarial. Temos de acelarar a
passagem, que já começou, na parte mais avançada
de nossa indústria, rumo a práticas de produção
mais flexíveis, mais densas em conhecimento e vocacionadas
para a inovação permanente. Ao mesmo tempo,
na vasta periferia econômica do país, a tarefa
é organizar a travessia direta do pré-Fordismo
para o pós-Fordismo, sem que todos tenham de passar
pelo purgatório do Fordismo industrial. O país
todo não precisa primeiro virar a São Paulo
de meados do século 20 para poder depois virar algo
diferente.
A proliferação de formas contratuais de trabalho
que incluam trabalho tempórário e terceirizado
é corolário dessas mudanças. O que elas
não predeterminam é o arcabouço institucional
e, portanto, os efeitos distributivos de tal transformação.
A justiça e a prudência exigem que esses trabalhadores
" de segunda classe " gozem de direitos e contem
com representantes: para que não sofram abusos e não
sejam usados como " exército de reserva "
que fragilize a posição dos assalariados permanentes.
Daí a necessidade de atenuar o contraste radical entre
alto padrão de resguardo para os que desfrutam de empregos
regulares e falta quase total de direitos para os que estão
relegados à insegurança do trabalho temporário
ou terceirizado.
Lembrados de que a própria CLT disciplina o trabalho
por prazo determinado, os participantes em nossas discussões
procuraram fórmulas que alcançassem dois alvos
ao mesmo tempo. O primeiro objetivo é combater o trabalho
temporário ou terceirizado quando ele serve apenas
como instrumento para escapar de obrigações
trabalhistas. O segundo propósito é assegurar
que o trabalhador legitimamente temporário ou terceirizado
esteja protegido por lei e representado por sindicato. Não
há como abolir o problema. Temos de enfrentá-lo.
De nossa discussão resultou a proposta de tres iniciativas
compelementares. A primeira iniciativa é a promulgação
de um estatuto para disciplinar as condições
mínimas de trabalho e os direitos dos trabalhadores
que atuam ao largo de todo o espectro de formas legais de
trabalho que ocorrem hoje fora das fronteiras do trabalho
permanente tradicional.
A segunda iniciativa é a construção
de mecanismos para representar e organizar esses trabalhadores.
Os meios de comunicação eletrônica ampliam
as oportunidades para representar trabalhadores que não
se encontrem juntos no mesmo lugar.
A terceira iniciativa é permitir aos trabalhadores
permanentes de uma empresa representar os terceirizados daquela
empresa desde que satisfeitas duas condições.
A primeira condição é que os terceirizados
não se hajam ainda organizado e feito representar diretamente.
A segunda condição é que, por maioria
simples, concordem com tal meio provisório de representação.
Já a partir do topo da pirâmide salarial, a
iniciativa recomendada é a efetivação
do princípio constitucional de participação
dos trabalhadores nos lucros ou resultados das empresas. Princípio
que até hoje permanece letra morta. É natural
começar a dar-lhe efetividade a partir dos níveis
mais altos do assalariados, em círculos concêntricas
que incluam parcelas cada vez mais amplas da força
de trabalho. É entre os assalariados melhor remunerados
que se entende e se abraça com mais facilidade a idéia
de que empresa e empregado podem e devem ser, de alguma maneira,
sócios.
Os participantes nessas discussões preocuparam-se
em não deixar que a participação nos
lucros ou resultados servisse apenas para converter salário
regular em remuneração variável. Indícios
de tal conversão devem ser considerados sinais presuntivos
de violação da lei. E insistiram que a integridade
do princípio requer, como garantia indispensável,
o acesso dos representantes dos trabalhadores à contabilidade
das empresas. Tal acesso pode surtir benefícios adicionais
ao servir para instigar padrões mais exigentes de "
governança corporativa " nas grandes e médias
empresas em que costumam trabalhar os assalariados mais bem
remunerados.
Regime sindical
O tema da revisão do regime sindical foi incluído
em nossas discussões por insistência das centrais.
(Julgara-o eu, erradamente, controvertido demais para se prestar
à construção de uma convergência
preponderante de opinião.) Não há como
ter projeto consistente a respeito do trabalho sem equacionar
os problemas suscitados pelo regime sindical. E as divergências
- profundas e reais - a respeito da reforma do sistema sindical
deixam de ser impedimentos a acordos significativos quando
se abandona o embate de pontos de vista abrangentes em favor
do trato de questões práticas e pontuais.
Uns dizem que querem defender até o último
suspiro o regime de trabalho instituído por Getúlio;
outros, que a tarefa prioritária é substituí-lo.
Uns reafirmam lealdade ao princípio da unicidade sindical;
outros insistem que o caminho é o do pluralismo sindical.
Duas pessoas, porém, não dão a mesma
resposta a pedido para definir unicidade. A solução
é sair do plano das generalidades e descer ao campo
das concordâncias específicas. Um mesmo programa
prático pode ter mais do que uma única justificativa
e mais do que uma única interpretação.
Para surpresa minha, nossas discussões apontaram cinco
pontos concretos de convergência. Todos figuram há
tempo no debate nacional. Alguns já estão antecipados
na agenda legislativa em curso. Vistos, porém, em seu
efeito combinado e cumulativo, representam, ao lado das outras
iniciativas resumidas nessa minuta, revolução
no estatuto do trabalho no Brasil.
1. Reconhecer em lei o papel das centrais como organizações
de âmbito nacional, transcendendo setores específicos
da economia e representando correntes distintas dentro do
movimento sindical (Lei 11.648/2008, sancionada em 31.03.08).
Há paradoxo em nossa realidade sindical. Um sistema
que, por conta do princípio da unicidade, seria, de
acordo com o direito escrito, unitário, pauta-se, de
fato, por hiperfragmentação sindical. O resultado
é negar ao país agentes institucionais adequados
para negociar acordos de âmbito nacional. Entre tais
acordos, espécie que interessa especialmente ao objetivo
de escapar da prensa (entre economias de trabalho barato e
economias de elevada produtividade) pelo alto e não
pelo baixo é a espécie que vincula aumento de
salário a aumento de produtividade. Acordos de tal
ordem só existem em países, como a Súecia
e a Alemanha, em que os centros decisórios do movimento
sindical gozam de autoridade genuinamente nacional.
Em nosso país imenso e desigual, não podemos
aspirar a fórmulas tão simples quanto as abraçadas
por aqueles países europeus. Entretanto, as centrais,
que se desenvolveram ao largo do regime oficial, representam
a melhor esperança. Daí a razão para
reconhecer-lhes em lei o poder não só de representar,
mas também de negociar quando a negociação
diga respeito a questões básicas e gerais como
a relação que deva haver entre aumento de salário
e aumento de produtividade..
2. Substituir o imposto sindical por " participação
negocial " . Há diversidade de opinião
a respeito entre os dirigentes sindicais. Alguns preferem
por princípio substituir o imposto sindical, que rejeitam
como instrumento de um sindicalismo oficial, atrelado ao Estado
e suscetível dos abusos decorrentes de financiamento
oficial. Já outros, embora temam a abolição
do imposto sindical como ameaça ao vigor do movimento
sindical, consideram mais ou menos inevitável sua substituição.
E buscam o sucedâneo com mais potencial para assegurar
o vigor do sindicalismo. Desses diferentes pontos de partida,
chegamos à mesma conclusão: é preciso
encontrar substituto para o imposto sindical que fortaleça
a legitimidade do sindicalismo sem comprometer sua independência
financeira.
Aceita-se, como esse substituto, a " participação
negocial " : vale dizer, um regime coletivo e consenusal
de cobrança. A assembléia do sindicato aprova
ou rejeita proposta de contribuição ao sindicato.
Tomada a decisão coletiva, ela vale obrigatoriamente
para todos os representados (sejam eles ou não membros
do sindicato, de acordo com o princípio, enunciado
em seguida, de que, na base, o sindicato da categoria preponderante
representará todos os trabalhadores). E a contribuição
terá de obedecer a um teto, fixado em lei, na forma
de porcentagem do salário anual médio dos filiados
ou dos representados.
3. Assegurar ao sindicato da categoria preponderante na base
- na local de trabalho ou na unidade fabril - o direito e
a responsabilidade de representar todos os trabalhadores que
atuem naquela base, seja qual for sua categoria. Esse é
o resíduo pragmático do princípio da
unicidade que todos apoiam: tanto os que abraçam aquele
princípio como regra geral quanto aqueles que o rejeitam.
Importante entender que não se trata simplesmente
de restringir a unicidade; trata-se de redesenhá-la.
Na base do sistema sindical, a divisão da representação
em categorias seria sacrificada ao imperativo de uma representação
unificada, a ser exercida pelo sindicato da categoria preponderante.
Nesse sentido, amplia-se o reino da unicidade, reinterpretada
de maneira específica e prática.
Evita-se, com isso, fragmentação na base que
ameace prejudicar, sobretudo, os setores mais frágeis
do assalariado. Cria-se arcabouço favorável
a prática sindical includente. E facilita-se a negociação
coletiva, em benefício não só dos trabalhadores,
mas tambem dos empresários de boa fé.
4. Combater práticas anti-sindicais. A reconstrução
do regime sindical - concordamos todos - precisa vir acompanhada
de compromisso para combater práticas anti-sindicais.
A proposta esboçada nessa minuta traz proveito a trabalhadores,
a empresários e a todo o país. Um de seus pressupostos
é a universalidade de seu cumprimento, uma vez traduzida
em lei. Não convém ao Brasil ter um regime que
no papel fortaleça os interesses do trabalho - e da
produção - mas que na realidade do dia-a-dia
fique sujeito a cumprimento esporádico, seletivo ou
discricionário.
Comprometer-se em combater práticas anti-sindicais
significa não tolerar qualquer tentativa de tolher
ilegalmente o direito de organizar o sindicato ou de exercer,
dentro da lei e do respeito às prerrogativas legais
dos patrões e de seus representantes, a militância
sindical. O objetivo não é facilitar o conflito;
é, pelo contrário, zelar pelo respeito das partes
a regras que permitam compor interesses contrastantes e descobrir
interesses compartilhados.
Tal compromisso - concluímos - há de traduzir-se
de um lado em política de governo e de outro lado em
recursos técnicos e humanos adequados para a justiça
e o ministério público do trabalho. E se fortaleceria
com a institucionalização da figura do "
agente sindical " - representante do sindicato preponderante
e, com isso, de todos os trabalhadores no local de trabalho
ou na unidade fabril - em qualquer empresa que tenha mais
do que certo número de empregados. Ao agente sindical
se deve assegurar lugar para trabalhar dentro da própria
unidade de trabalho. Da mesma maneira, deve-se estabelecer
procedimento para permitir ao agente sindical atender os associados
sem interfirir com as rotinas do trabalho, tais como disciplinadas
por lei e por contrato.
5. Organizar legalmente a prática das negociações
coletivas, liberada do critério restritivo da data-base.
Esse ponto de nosso acordo surgiu de tese apresentada pelos
representantes dos juízes e procuradores do trabalho.
Alguns dos pontos anteriores dessa convergência a respeito
da reforma do regime sindical procuram assegurar a força
do sindicalismo sem prejudicar a flexibilidade da economia.
É o caso do reconhecimento legal do papel das centrais.
E também do poder que o sindicato da categoria preponderante
teria, no local de trabalho, para representar todos os assalariadoos
que atuem naquele local.
Tais medidas permitem - e até exigem - que se institucionalizem,
em todos os setores da economia, as negociações
coletivas, conduzidas diretamente entre empregados e empregadores.
E liberadas do critério autoritário e uniforme
de data-base, imposta por lei. O papel do regime legal não
é ocupar o espaço das negociações
coletivas e das relações contratuais. É
estabelecer arcabouço no qual tais negociações
e relações não estejam predestinadas
a representar apenas o triunfo dos fortes sobre os fracos:
do capital sobre o trabalho, e dos segmentos mais avantajados
do assalariado sobre os mais fracos.
Em vez de impor o conteúdo de cada contrato de trabalho,
diminuindo o espaço da negociação coletiva,
amplia-se esse espaço, mas reforma-se a estrutura institucional
em que ela ocorre. E suprimem-se os resquícios de um
sistema que procura conter a negociação coletiva
dentro da camisa-de-força de um calendário uniforme,
que pode não guardar relação com as circunstâncias
de cada sindicato, de cada empresa e de cada setor da economia.
É maneira mais eficaz de reconciliar os direitos do
trabalhador com a inovação na economia. Resulta
de nossa experiência e de nossa história; não
copia qualquer sistema estrangeiro. E exemplifica o espírito
do experimentalismo, ao mesmo tempo pontual e abrangente,
que marcou as discussões resumidas nessa minuta.
O significado teórico e político dessa
iniciativa
Conclúo a descrição esperançosa
dessa iniciativa com duas reflexões: uma de ordem teórica
e outra de natureza política.
Um dos pressupostos teóricos dessa proposta é
a convicção de que as instituições
- e a política em que elas se constróiem - influem
na partilha da renda, da riqueza e do poder entre o capital
e o trabalho. Essa pode parecer, ao leigo, tese óbvia
demais para requerer explicitação. Contradiz,
entretanto, diretamente as idéias que há século
e meio prevelecem tanto nas correntes dominantes da teoria
econômica quanto nas idéias mais prestigiosas
do pensamento de esquerda.
Dogma doutrinário que sobreviveu à rebelião
Keynesiana contra as idéias econômicas dominantes
em meados do século 20 é a tese de que o salário
real não pode subir mais do que a produtividade média
do trabalho. Qualquer tentativa de ultrapassar o suposto teto
estaria fadada ao malogro: a inflação consequente
negaria eficácia real ao ganho nominal. Essa tese converge
com a idéia de Marx de que o grau da " mais valia
" tende a convergir nas economias ditas capitalistas.
Essa idéia goza de aceitação tão
universal que não surpreenderá a ninguém
ser ela, em boa parte, falsa. O elemento de verdade contido
na meia verdade de que o salário real não pode
aumentar acima do nível da produtividade do trabalho
é que o aumento do salário nominal por decreto
- como por meio de uma política de salário mínimo
- tem eficácia limitada se não fôr complementada
por iniciativas que transformem as relações
de poder e de parceria entre o capital e o trabalho.
Países em níveis semelhantes de desenvolvimento
econômico e tecnológico ostentam diferenças
dramáticas na parte da renda nacional que asseguram
ao trabalho, como demonstram as estatísticas comparativas
a respeito da razão entre salário e valor agregado
no setor industrial. Mesmo quando se controla para diferenças
ligadas à relativa escassez de fatores de produção,
persistem enormes diferenças. É às instituições
e à política que se deve atribuir esse resíduo
substancial de diferença entre países, de nível
semelhante de desenvolvimento, na partilha da renda nacional
entre o trabalho e o capital.
Voltar-nos da doutrina das instituições para
a política dos acertos entre as organizações
do trabalho e do capital é deparar-nos com outro aspecto
da realidade e da proposta aqui retratadas. Descrevo nesse
texto uma discussão que prenuncia uma negociação.
Negociaçao em primeiro lugar entre as centrais sindicais
e depois negociaçao entre os dirigentes sindicais e
o empresariado. Desfigura-se o sentido da negociação
se não se guarda em mente o cunho abrangente e integrado
da proposta esboçada. Não se trata de amontoado
de sugestões desconexas. Trata-se de programa global.
Esse programa tem uma lógica: suas partes guardam relação
umas com as outras. E tendem a perder força, e até
sentido, quando se deixa de respeitar essa relação.
A desoneração radical da folha de salários
é reivindicação quase unânime dos
empresários. Ela não deve ser instaurada, contudo,
se não em troca de outras medidas a que muitos empresários
tenderão a resistir, como a organização
e representação dos trabalhadores terceirizados,
a amplicação progressiva do princípio
de participação nos lucros e resultados e o
resguardo dessa participação por meio do acesso
que precisam ter os sindicatos à contabilidade das
empresas. Tratar a proposta alinhada nessa minuta como conjunto
de ações separadas, sob o pretexto de espírito
prático, seria, pelo contrário, afundar em pragmatismo
antipragmático.
A caracterização da discussão aqui retratada
como negociação exige outra qualificação.
Acostumamo-nos a aceitar com naturalidade a idéia de
que os grupos organizados da sociedade brasileira devam consensuar
os regimes jurídicos que os governem. Essa idéia
é inaceitável, de direito e de fato, pela nação
hoje. Democracia não é corporativismo.
Os grupos organizados e interessados - nesse caso, os sindicatos,
inclusive as centrais sindicais, e os empresários,
inclusive as organizações patronais - devem
ser ouvidos. Em primeiro lugar, por imperativo de justiça:
conhecem a realidade e serão afetados pelas mudanças.
Em segundo lugar, por cautela: qualquer proposta integrada,
como essa, a respeito das relações entre o trabalho
e o capital terá melhor condição de avançar
se contar com o apoio de grande convergência de lideranças
sindicais e empresariais. Ouvi-las, entretanto, não
significa, porém, delegar a elas a decisão a
respeito do desfecho.
Os trabalhadores organizados e o empresariado das empresas
grandes e médias que atuam na economia formal podem
ter interesses conflitantes. Têm, também, contudo,
interesses compartilhados. E quanto mais lúcidos forem,
mais conscientes serão desses interesses comuns. Será
esse especialmente o caso com respeito aos setores intensivos
em capital - a parte mais rica e avançada da economia
-, na qual historicamente se baseiaram as organizações
sindicais mais fortes e influentes. Nada garante que esse
encontro de interesses coincida com os interesses da maioria
desorganizada e excluída. Entendo ser minha tarefa
ajudar a construir uma convergência de posições
entre as centrais sindicais e, de forma mais ampla, entre
elas e o empresariado, de tal forma que o conteúdo
da convergência atenda os interesses dessa maioria excluída
e desorganizada.
Orienta-se o esforço por um princípio de esperança:
que há maneira de entender os interesses dos trabalhadores
e os empresários organizados que serve, ao mesmo tempo,
os interesses da maioria. Não se avançará
nesse terreno, nem sequer se conseguirá demarcá-lo,
sem desassombro, despojamento e imaginação.
A integridade dessa construção de convergência
requer clareza a respeito de quem tem autoridade e poder para
decidir. Não são os trabalhadores e os empresários
organizados que decidirão, ou que devam decidir, ao
final das contas, qual o regime legal das relações
entre o trabalho e o capital no Brasil. São o Congresso
Nacional e o Presidente da República, instruídos
pela opinião dos cidadãos, ouvidas, entre eles,
as organizações mais diretamente interessadas.
Daí a importância de engajar toda a nação
em debate sobre tema decisiva para nosso futuro nacional.
Deixar de apostar em trabalho barato e desqualificado. Apostar,
ao contrário, em valorização e em qualificação
do trabalho, sustentados por um aumento da produtividade de
todos, inclsuive dos trabalhadores que até agora ficaram
de fora. Incluir na economia formal e no regime das leis a
maioria que até hoje não se incorporou a eles.
Andar rumo a um modelo de desenvolvimento que assegure a primazia
dos interesses do trabalho e da produção e que
se baseie na ampliação de oportunidades econômicas
e educativas. Fazer, portanto, da democratização
de oportunidades para aprender, trabalhar e produzir o próprio
motor do crescimento econômico. Em tudo, a indagação
decisiva é: onde estão os outros?
Roberto Mangabeira Unger
Valor Econômico
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