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CINEMA
"Dois Destinos", produção de 1962 do cineasta italiano, narra o reencontro de dois irmãos separados na infância
Zurlini realiza busca pela verdadeira afeição
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
"Dois Destinos" (1962), a
triste crônica familiar de
Valério Zurlini (1926-82), é um filme de afecções, de estados afetivos absolutos, uma obra dedicada, portanto, ao primeiro plano,
aos rostos dos atores.
Quando fica sabendo da morte
do irmão mais novo, logo de início, Enrico (Marcello Mastroianni) põe-se a andar pela rua, mas
seu movimento é interrompido
por um plano de seu rosto lívido e
estático. Esse corte abole nossa
noção de espaço para nos conduzir a outra dimensão, como se o
tempo entrasse em cena para abater o personagem. Como se, por
um "efeito retardado" que parece
comum a destinatários de notícias trágicas, o tempo (de uma vida toda) tombasse sobre Enrico.
O espectador de "Dois Destinos" não mais se verá livre, doravante, da sensação de sofrer, também ele, essa (o)pressão do tempo. Narrando, por meio de Enrico, a história da relação dos dois
irmãos em flashback a partir daí,
o diretor nos obriga a sentir uma
angústia que, de resto, deveria ser
a mais comum: a certeza de que a
morte nos espera no fim.
Jacques Perrin, o ator-fetiche de
Zurlini, faz o caçula. Seu personagem, Lorenzo, tem, não por acaso,
o mesmo nome do jovem que interpretara no filme anterior do cineasta, o clássico "A Moça e a Valise" (1960). Os Lorenzos de Perrin não compartilham a mesma
classe social, mas a mesma fragilidade e pureza d'alma. Os dois são
como o Aliosha (o caçula Karamázov) dostoievskiano, ingênuos
e conciliadores, afetuosos e pios.
Se Lorenzo é Aliosha, Enrico é
uma espécie de Ivan Karamázov,
o intelectual niilista do tipo que já
perdeu todas as ilusões na vida,
mas não (de todo) o coração.
Diante de um quadro que lhe lembra as paisagens de sua infância,
Enrico nos conta como testemunhou a inadequação do caçula para a vida.
A paisagem toscana que Enrico
vislumbra no quadro lhe evoca a
casa em que o irmão, apartado da
família desde cedo, foi criado numa "redoma de vidro". Separados
na infância, os dois se reencontram na juventude, estranhos um
ao outro, mas unidos, em busca
de identidade, por um mesmo
sentimento, a afeição à avó.
A Zurlini não interessa senão o
que, dos laços familiares, resta de
verdadeira afeição. Sua "cronaca
familiare" nos conduz de um estado afetivo absoluto a outro, e à
medida que nela adentramos é todo o "mundo de afecções" do cinema italiano do pós-guerra que
nos toma novamente: "Dois Destinos" é um daqueles clássicos italianos de cuja genuína tristeza já
não estamos à altura, tão embotada anda a nossa sensibilidade de
(tele)espectador contemporâneo.
Dois Destinos
Cronaca Familiare
Produção: França/Itália, 1962
Direção: Valério Zurlini
Com: Marcello Mastroianni, Jacques
Perrin, Sylvie
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