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São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

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Veterano da arte digital fala sobre os novos desafios da cultura eletrônica pós-internet

Futuro de proveta

DIEGO ASSIS
DA REPORTAGEM LOCAL

A arte "do futuro" tem ainda algumas contas a acertar com o presente. Quem afirma é o australiano Simon Biggs, 46, professor pesquisador do departamento de artes e design da Universidade de Sheffield Hallam, Inglaterra, e um dos convidados de honra do 4º Festival Internacional de Linguagem Eletrônica, que acontece até o final do mês em São Paulo.
"Dominar o computador é fácil. Você só precisa aprender algumas técnicas. Mas, dito isso, não significa que você tenha aprendido a compor, a escrever e a produzir uma imagem. E o que você tem hoje é um monte de multimídia ruim", afirma o artista, radicado em Londres desde 1986, e que, no final da década de 70, já havia trocado a pintura pelo computador.
Sempre fascinado pelos "processos", pelo fazer artístico, Biggs vem ao festival com "Stream", instalação digital que lança questões técnicas, estéticas e filosóficas sobre a sociedade tecnológica e sobre o próprio objeto na arte.
"Não faço arte para o consumo, que possa ser coletada ou avaliada como um objeto. Até por razões políticas, não gostaria de ver meu trabalho pendurado na parede", disse em entrevista à Folha o artista, para quem a palavra "democracia" continua soando um tanto espinhosa, mas que acha que a melhor galeria já atende pelo nome de internet.
 
Folha - O que trouxe de novo a internet para o universo da arte?
Simon Biggs -
Meu primeiro contato com a rede foi nos anos 80, antes da internet que conhecemos hoje. E a primeira impressão não foi muito boa. Pensei: não é visual, não é muito interativo, não estou interessado (risos). Então veio o CD-ROM e depois a World Wide Web, e percebi que poderia colocar minhas obras ali para qualquer um ver a qualquer hora.

Folha - Um meio democrático?
Biggs -
Democrático? Não sei o que essa palavra quer dizer (risos). Mais aberto e acessível. Sei de muitas pessoas que têm preconceito com galerias, mas, ainda que haja quem não se sinta confortável com a internet, o número de pessoas que se sentem confortáveis com ela já é muito maior. E isso me traz um público novo.

Folha - Mais jovem?
Biggs -
Mais ou menos. Imagino que seja alguém interessado em uma visão de mundo pluralista em que o conflito de idéias seja visto como algo positivo, que assuma a responsabilidade de extrair o seu próprio sentido da obra. Raramente uso elementos da cultura pop. Meus trabalhos fazem referência a Kafka, Beckett, Milton, Dante. Não a um escritor específico, mas ao ato de escrever e ler, o processo de como o significado é construído. O que gosto no computador é pedir que ele faça [a escrita] por mim. Mas computadores não têm motivos para escrever, são máquinas que fazem o que lhes mandam.

Folha - Como "Stream", que reproduz frases aleatórias de "Ulisses" à medida que as pessoas se movimentam na instalação?
Biggs -
Em "Stream", lido com a idéia de as pessoas poderem se ver refletidas em um telão [por meio de formas, cores e textos], mas também ver o reflexo de outras pessoas. Em muitos textos de Joyce, isso é explícito. Histórias como "Ulisses" têm uma forte voz do autor. Quando você lê, tenta entrar naquele mundo, que não é o seu -e talvez nem seja o dele.

Folha - A crise da identidade?
Biggs -
A obra permite que você veja fisicamente diversos pontos de vista ao mesmo tempo. Então está todo mundo vendo a maneira de ver de todos os outros. O que tento fazer lá é criar uma confusão sobre quem é quem. Esse é o meu ponto de vista ou é o seu? É uma metáfora de como os individualismos se formam em relação com o coletivo e vice-versa. Nada é fixo. Somos definidos pelo que nos rodeia, e isso muda sempre.

Embora usando conceitos de virtualidade, você trabalha com instalações. Acha que a arte digital tem essa necessidade de buscar o contato físico, além da internet?
Biggs -
Sim. Ainda que eu use a tecnologia, meu trabalho nunca foi sobre pessoas interagindo com computadores, mas sobre pessoas interagindo com outras, processos sociais, e a obra é resultado disso. A internet mudou o papel do computador, que antes era usado no trabalho e agora está nos quartos, nos carros, em todo lugar. O computador não é mais uma interface para o espaço virtual, é um meio de comunicação.

Folha - E então como vamos saber diferenciar um artista digital de um Bill Gates da vida?
Biggs -
São valores diferentes (risos). Importo-me com as pessoas e com como posso influenciar a vida delas. Já para Gates e o comércio em geral, é tudo dinheiro.



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