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CINEMA
Diretor Abbas Kiarostami percorre ruas de Teerã e aborda os padrões de comportamento da sociedade iraniana
"Dez" atinge a troca justa entre homem e câmera
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
O carro e a câmera. Para Abbas Kiarostami, esse dispositivo é algo mais do que a conjunção de duas máquinas, uma que
produz movimento, outra que
capta (apreende) esse movimento. Trata-se, para o cineasta, de
uma pequena casa com grandes
janelas em que a paisagem está
sempre mudando, um lugar ideal
para receber as pessoas sem compromisso e fazê-las se abrirem.
Em "Dez", Kiarostami não faz
senão aperfeiçoar seu dispositivo
para fazer seus convidados se sentirem ainda mais à vontade. A
convivência de atores não profissionais com uma equipe de profissionais de cinema era um incômodo para ele. A falta de homogeneidade do grupo impedia que
as relações se desenvolvessem
mais naturalmente. Substituindo
a equipe inteira por uma câmera
digital, ele tenta promover encontros ainda mais espontâneos do
que os que obtinha. Em nome
dessa espontaneidade, chega
mesmo a se fazer ausente da cena.
Uma mulher dirige o carro-dispositivo. Durante a primeira visita, a de seu filho, ela permanece o
tempo todo fora de quadro. O espectador não sabe, mas Kiarostami está sentado no banco de trás,
dando sua contribuição, por uma
escuta, ao diálogo entre a mãe que
quer se emancipar e o filho que a
condena.
A personagem só ganha corpo
depois que o garoto, voz de um
certo rancor paternalista, sai de
quadro. Da mesma forma, a condição da mulher iraniana, tema
que Kiarostami, ao contrário dos
discípulos, ainda hesitava abordar, só passa a constituir o centro
do filme a partir do momento em
que o autor se faz ausente. Para
deixar mais à vontade as visitas femininas, uma prostituta e uma
amiga da motorista, Abbas achou
melhor sair do carro.
É como se Kiarostami ligasse
seu dispositivo no piloto automático e conseguisse, nesse desprendimento, depurar seu método, reduzi-lo à essência sem revelar-lhe
o mistério, essa insondável fronteira entre o documentário e a ficção. "É melhor que o diretor se retire do caminho do filme e deixe
os personagens tomarem forma",
dizia ele, em 1994.
Em "Dez", essa proposição é levada ao pé da letra. A presença do
autor era o último obstáculo para
a realização dessa espécie de utopia que é a esperança de Kiarostami em chegar à relação de troca
justa entre o homem e a câmera.
Como Walter Benjamin, o cineasta iraniano acredita que a câmera
deixa de dar menos do que retira
quando proporciona a uma pessoa comum a oportunidade de
projetar a própria imagem.
Ao sair do carro-dispositivo, ele
se torna um de nós, espectadores.
Esse seu gesto de legar o filme ao
espectador, de nos propor uma
parceria e apelar para a nossa
criatividade na hora de preencher
as lacunas da narrativa, reconcilia
as duas grandes vertentes do cinema moderno do pós-guerra.
Vertentes que a obra do iraniano, nova pedagogia da percepção,
já retomava em seu percurso: da
crença rosselliniana em "uma
imagem justa" (que, em sua paciente apreensão do real, evita a
manipulação do espectador) à
bravata godardiana do "justo
uma imagem" (vertente antiilusionista que, por um espectador
ainda mais esclarecido e atuante,
soma ao "cinema da realidade" a
"realidade do cinema").
Dez
Ten
Produção: Irã/França, 2002
Direção: Abbas Kiarostami
Com: Mania Akbari e Amin Maher
Onde: em cartaz nos cines Frei Caneca
Unibanco Arteplex 9 e Cinearte 1
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