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"OS SERTÕES - O HOMEM: PARTE 1"
Grupo Oficina ritualiza a miscigenação do Brasil
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
José Celso tem o dom de estabelecer nexos entre clássicos literários e a história atual do Brasil. Foi assim há quatro décadas,
quando sua encenação de "Pequenos Burgueses", de Gorki, expôs as contradições da juventude
brasileira sob a ditadura militar.
Nos últimos anos, vem estendendo grandes painéis sobre o Brasil
a partir de "Os Sertões", de Euclydes da Cunha.
Depois de dançar a geografia
nacional em "A Terra", ritualiza a
miscigenação do brasileiro em "O
Homem", no aguardo da "Luta",
sobre a guerra de Canudos, terceira parte a ser apresentada, provavelmente em 2004.
Essa sequência intermediária,
no entanto, é tão imprescindível
que foi separada em duas etapas
de quatro horas cada. Nessa primeira parte de "O Homem", não
se trata simplesmente de estabelecer um paralelo histórico entre
Canudos e o MST, por exemplo.
Assim como Euclydes tenta distinguir as raízes da tragédia histórica na dinâmica da mistura de raças e no abandono na miséria da
seca, o Brasil apresentado no Oficina surge desde a carta de Caminha como um país ciclicamente
tomado por uma esperança messiânica em profetas e presidentes.
O brasileiro, "condenado à vida" em condições trágicas, procura sempre resgatar sua auto-estima para inventar uma nova civilização. Esse é o protagonista da
peça, não Antônio Conselheiro.
José Celso, ao encarnar o profeta com a auto-ironia habitual, teve
o cuidado de não se apresentar
enquanto um salvador. Dá a ribalta ao coletivo, um elenco de 60
pessoas de todas as idades e tipos
físicos, ostentando em cada rosto
a miscigenação do mundo, cantando em uníssono a jovialidade
de Renée Gumiel e a ancestralidade das crianças do Bexiga.
Há cada vez mais um texto coletivo, uma direção coletiva no grupo Uzyna Uzona. Mas disso não
resulta uma dispersão no ritual,
uma preguiça narcisista de se deixar ficar nessa rede que se estende
de ponta a outra do teatro, unindo
atores e platéia, concretizando a
rede de desejos que formou o Brasil. Aqui, cada um sabe seu papel,
o momento de interferir com seu
depoimento.
Nenhum gesto, sobretudo, é
aleatório. É como se o olhar antropológico de Euclydes, que descreve minuciosamente os rituais
da seca, se estendesse aos atuais
rituais urbanos do pregão da Bolsa, da cobrança de pênalti, e fosse
expressa em repentes e happenings a angústia brasileira cotidiana. A platéia não é coagida a
entrar nessa dinâmica, mas acolhida no seu desejo de participar, e o encantamento que resulta desse encontro faz a crítica se
envergonhar da necessidade de
seu distanciamento, em nome
de um relato mais preciso após o
calor da hora da peça.
É preciso assinalar, no entanto, que nesse clima ritualístico
pequenos fatos de bastidor acabam tomando uma dimensão
inesquecível. Como o trabalho
de parto durante o ensaio geral
da atriz Ana Guilhermina. Seu
filho, batizado de Lírio, acabou
se tornando o símbolo desse
brasileiro que se inventa a cada
dia. Por isso, caro Lírio, se por
acaso você ler este texto daqui a
20 anos, saiba que a gente por
aqui tem cumprido nosso papel.
Durma tranquilo neste seu país
do futuro.
Os Sertões - O Homem:
Parte 1
Texto: José Celso Martinez Corrêa,
Tommy Pietra e Catherine Hirsch
Direção: José Celso Martinez Corrêa
Com: grupo Oficina Uzyna Uzona
Onde: teatro Oficina (r. Jaceguai, 520,
Bela Vista, tel. 3106-2818)
Quando: sábado e domingo, às 18h;
até 26/10
Quanto: R$ 20
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