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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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Exposição apresenta crônicas visuais urbanas produzidas pelo francês Honoré Daumier e por Araújo Porto-Alegre

Sombras da cidade

Divulgação
"História de Dom Quixote", pintura de Auguste Lapierre sobre placa de vidro para projeção em lanterna mágica


ALEXANDRA MORAES
DA REDAÇÃO

A lanterna mágica, instrumento que projetava imagens pintadas em placas de vidro, um dos precursores do cinematógrafo, é o ponto de partida da exposição "A Comédia Urbana: De Daumier a Porto-Alegre", na Faap.
A mostra faz um recorte das relações entre França e Brasil nas décadas de 30 e 40 do século 19 através da interseção entre Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879) e Honoré Daumier (1808-1879).
Vindas de museus como a Maison de Balzac e o Carnavalet, de Paris, e da Biblioteca Nacional, no Rio, 240 obras ilustram essa relação intercultural e a crítica social empreendida pelos dois artistas.
"A Lanterna Mágica" era o título de um periódico editado anonimamente por Porto-Alegre nos anos 1840 e a expressão representava, segundo a historiadora e curadora da mostra, Heliana Angotti Salgueiro, "uma simbologia ambivalente: a exibição da verdade e a criação de ilusões".
Essa ambivalência, tão disseminada no século 19, é um dos fundamentos da mostra. "É um século cheio de paradoxos e muito crítico de si mesmo."
Porto-Alegre, nascido em Rio Pardo (RS), vai para o Rio de Janeiro estudar pintura e, de lá, segue, em 1831, para Paris com o pintor Jean-Baptiste Debret.
Na capital francesa pré-Haussmann (o prefeito nomeado por Napoleão 3º em 1853 que transformou uma vila de conformação medieval em uma cidade de jardins e bulevares -não apenas para embelezá-la mas também para dificultar barricadas), Porto-Alegre trava contato com a imprensa ilustrada e com as várias representações dos "tipos sociais" da época de Louis Philippe.
"Muitas pessoas compravam os jornais apenas por causa das litografias, que caricaturavam a sociedade e seus hábitos", explica Salgueiro. "Foi um momento fundamental, em que Paris via um boom de "imagerie". Formou-se toda uma geração ligada à imprensa ilustrada", completa.
Dentre as litografias, destacam-se as de Daumier, que, com sua série "Les Robert Macaire", criticava a corrupção da burguesia e a malandragem generalizada, através das trapaças de Robert Macaire e de seu escudeiro Bertrand. Boêmios e profissionais de áreas diversas também são alvos de suas caricaturas.
Em 1937, ao retornar ao Rio de Janeiro, Porto-Alegre se envolve em polêmicas e publica suas primeiras caricaturas, também tidas como as primeiras do país.
"É importante notar a pluralidade de Porto-Alegre, algo típico do homem do século 19, pessoas que foram extremamente atuantes em diversas áreas", afirma a curadora.
Em 1844-45, é lançado o folhetim "A Lanterna Mágica", em que Porto-Alegre satiriza a sociedade carioca. A dupla de Daumier serve de modelo para Laverno e Belchior, desenhados por Rafael Mendes de Carvalho e acompanhados por texto de Porto-Alegre, que denuncia as malandragens do cotidiano carioca e lhe rende ainda mais inimigos.
"Ele é um homem angustiado com o que encontra no Brasil. Queria um país urbanizado, que crescesse, tinha projetos saint-simonianos, próximos daqueles de Paris", explica Salgueiro. Mas, desiludido, Porto-Alegre volta para a Europa em 1859, onde morre, em Lisboa.
No final da exposição, uma imagem de Dom Quixote feita por Daumier e as placas de lanterna mágica que narram episódios sobre o cavaleiro, além das caricaturas críticas a Porto-Alegre -que chegou a adotar "Pitangueira" como sobrenome por conta de seus idealismos em relação ao Brasil- são uma "alegoria dos combates que enfrentou no país", segundo a curadora, e inevitavelmente dão força à imagem de um Policarpo Quaresma avant la lettre.


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