São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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ALÉM DA REFORMA AGRÁRIA

Pesqueiro faz sucesso em assentamento rural

Marcos Sá Corrêa/Folha Imagem
O assentado José Repolês Teixeira, que possui um alambique


MARCOS SÁ CORRÊA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se não fosse um capítulo da reforma agrária em Pinheiral (RJ), um município de 20 mil habitantes no Vale do Paraíba, o mineiro José Carlos Estevam da Silva seria uma história de sucesso.
Mora num município que oficialmente não tem pesca nem turismo. Mas num sítio de 26 mil m2, a dois quilômetros da cidade, toca com a mulher, a filha e cinco empregados um pesque-pague com 400 fregueses.
Vem gente de longe para fisgar tilápias, tambaquis, pacus e carpas em seus açudes de água turva. E José Carlos, a R$ 7,50 o quilo de peixe frito, faz mais de R$ 3.000 por mês, trabalhando de quinta a domingo.
Comprou um terreno em que só crescia capim. Quatro anos depois, tem 7.000 m2 de lâmina d'água, playground, salão de jogos, piscina e campo de futebol, além de 60 coqueiros e 150 mudas de árvores frutíferas, numa região onde pomar é luxo.
De Pinheiral, onde chegou há 15 anos depois de "correr meio Brasil como mecânico itinerante", ele só tem uma queixa. Acha que o pesque-pague tem que funcionar no campo e à sua volta os vizinhos estão loteando tudo.
"Ultimamente deram para vender terrenos de 10 metros por 30", diz. E não adianta se queixar à prefeitura, pois José Carlos está no meio de um assentamento rural, uma autêntica relíquia da reforma agrária no Estado do Rio de Janeiro, herança do tempo em que à frente do movimento estava a Igreja Católica, e não o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
Como ele foi parar lá dentro? Para responder, José Carlos vai buscar o recibo. Pagou R$ 8.000 a prazo pelo lote, comprado do carroceiro José Raimundo Silva. "Mas acho que o Zé já era o terceiro dono deste sítio", diz ele. "Eu sou o quarto, porque a maior parte das invasões é para isso mesmo, para vender."
Parece implicância. Mas não é muito diferente do que se ouve a menos de um quilômetro do pesque-pague, atrás de uma porteira marcada pela estrela do PT.
"O problema é que no interior do Rio de Janeiro quase não existe mais área rural. No primeiro aperto, corre todo mundo para a cidade", diz o assentado José Repolês Teixeira.
Dezessete anos atrás, ele ajudou a fazer aquela invasão, que parecia um caso de manual. Invadiu-se o retalho de um latifúndio legendário, que originalmente pertencera ao comendador Joaquim José de Souza Breves, o maior cafeicultor do mundo no século 19, dono de 6.000 escravos e 102 fazendas. Quando 45 famílias começaram a tomar aqueles 600 hectares, eles estavam encostados no Ministério da Agricultura, que desde 1978 deixara de usá-los como posto de zootecnia, para a quarentena de animais importados. Nos pastos que o governo largou, pastava na época o gado do pecuarista Darci Pires do Nascimento, que Repolês chama de grileiro.

Circunstâncias
Se os pretextos para a reforma agrária em Pinheiral eram bons, as circunstâncias no país não poderiam ser mais favoráveis. As terras estavam encaixadas entre a Via Dutra, e o Colégio Agrícola Nilo Peçanha, da Universidade Federal Fluminense.
Ou seja, tinham uma estrada muito trafegada de um lado e uma escola técnica do outro. Em Brasília, engatinhava o regime civil sob a Presidência de José Sarney, um radical da conciliação. No Estado, o governador Leonel Brizola era o primeiro a se dizer socialista.
Quase duas décadas depois de pegar seus três hectares, Repolês mora, com a mulher e os dois filhos, numa casa onde as galinhas ciscam na varanda. Tem 42 anos. Desde os 25 se desdobra entre a lavoura e a militância. Já foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Piraí, município colado em Pinheiral, dirigente local do MST e vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio de Janeiro. E nem por isso deixou a roça.
Já fez de tudo. No começo, vendia hortaliças na feira de Volta Redonda. Mais tarde, tirava 70 litros de leite por dia das 150 cabras criadas no lote. Agora, produz 30 mil litros de cachaça por ano, com a cana que planta. Nesses nove meses de governo Benedita da Silva, virou presidente do Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro. Seu gabinete fica a cento e tantos quilômetros do sítio. Ele vai e volta sem parar, empenhado em distribuir 2.700 títulos de posse aos assentados sem-papel.
Como assentado, Repolês tira em média "uns dois mil e poucos reais por mês, limpos". Dá para um carro Kadett com quase dez anos de uso, um caminhão Ford de 1969 e um trator fabricado em 1970. Mas admite que, além dele, "no assentamento, em boa situação mesmo, só tem o Alvacy da Cruz Roela, o Antonio Feliciano Neto, o Joaquim, o Alcy Eller. Mas, desses, alguns são aposentados. Têm renda garantida".
Citado entre os aposentados que deram certo, Joaquim Silva Moreira conta sua experiência: "Eu vim porque estava encostado e não agüentava mais ficar à-toa, dormindo de dia. Ouvi falar que tinha um monte de gente vindo para cá e vim atrás". Ele tem 76 anos. Aposentou-se na Light há 27. A aposentadoria lhe dá R$ 1.100 por mês. Em outubro, plantando jiló, ganhou R$ 700. Mas é crítico severo do fracasso alheio: "Também cheguei sem prática. Aprendi fazendo. A maioria foi embora ou manteve um lotezinho só para morar".

Desistências
Quantos desistiram nem Repolês sabe ao certo. "Chegamos a pôr aqui dentro 200 famílias. No cadastro de 1998, já tínhamos 216 propriedades e 80 famílias", diz ele. A tentação imobiliária chegou em 1993, quando a Companhia Siderúrgica Nacional foi privatizada. Despedidos nas ondas de enxugamento, os ex-funcionários gastavam a indenização em casas de campo nos arredores de Volta Redonda. E Pinheiral ficava perto.
Se lhe faltam números, Repolês sabe muita história. Por exemplo, dos irmãos Waldyr, Darcy e Gessey Francisco da Silva, que tinham casa própria e barraca na feira de Volta Redonda, mas participaram do assentamento, passaram adiante seu lote por R$ 12 mil para montar uma loja na cidade. "Perderam tudo e Waldyr apareceu depois por aqui, querendo trabalho como empregado. Arranjei outra terrinha e ele vendeu de novo."
Os assentados não introduziram a especulação em Pinheiral. Encontraram ela pronta. "A cidade é toda feita em cima de posses. Começou com grileiros. Depois veio a invasão e até que organizou as coisas um pouco melhor", afirma Repolês. O secretário de governo Jorge da Silva Mello confirma: "Já se fez tanta politicagem por aqui distribuindo terras do governo federal, que a prefeitura não tem mais como regular a propriedade".
Pinheiral tem pouco mais de 5.000 imóveis. Pouco mais de 3.000 pagam IPTU.
A cidade inteira mede 81 quilômetros quadrados. Menos da metade, segundo Silva Mello, está regularizada. O resultado aparece nos morros cravejados por ninhos de cupim.
O córrego Caixinha de Areia, que já abasteceu o município, praticamente secou na estiagem deste ano. E a terra, cotada a R$ 10 mil o alqueire, vale tão pouco que é melhor negócio vendê-la como barro para as sete olarias que ainda são a principal indústria da região.
Levada por elas de caminhão, a terra vale R$ 25 mil o alqueire. E deixa para trás uma cratera estéril onde o dono, com sorte, pode plantar uma piscina.



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