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DIPLOMACIA
Ex-diretor da Opaq critica atuação dos EUA
Bustani afirma que Estados Unidos controlam entidades com orçamento
ELIANE CANTANHÊDE
DIRETORA DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Destituído da direção geral da
Opaq (organização para o fim das
armas químicas) pelos EUA, retirado do posto provisório de cônsul-geral do Brasil em Londres pelo Itamaraty, o embaixador José
Maurício Bustani, 57, tem a liberdade que nenhum outro diplomata tem: a de dizer o que pensa.
A sua verdade, a alguns meses
do fim do governo que o puniu, é
sobre a arrogância e as exigências
com que os EUA se comportam
nos organismos internacionais,
como a ONU, o FMI, a Opaq. Um
direito, segundo Bustani, que eles
se atribuem por serem os maiores
financiadores desses organismos.
"A maneira mais eficaz e mais
direta de os EUA exercerem seu
controle em tudo é via orçamento", disse Bustani, explicando por
que o secretário do Tesouro norte-americano, Paul O"Neill, se
sente no direito de dizer que o
FMI não tem que dar ajuda nenhuma ao Brasil enquanto o dinheiro sai do país direto para a
Suíça. Ele deu entrevista em Brasília. Leia os principais trechos:
Folha - O sr. já vinha tendo problemas com os EUA ou foi especificamente com o governo Bush?
Bustani - Eu assumi a Opaq em
1997 porque tinha que ser alguém
de país em desenvolvimento e da
América Latina e eu fiz toda a minha carreira em organismos e
questões multilaterais. Com o governo Clinton, havia diálogo.
Com esse pessoal do Bush, a coisa
saiu do controle. Não há diálogo,
não há negociação. São daquela
velha escola de "ou você está comigo, ou está contra mim". Queriam coisas impossíveis. Que, por
exemplo, eu assinasse em branco
relatórios sobre inspeções dentro
dos EUA que não foram feitas,
simplesmente porque os inspetores não conseguiram entrar, não
viram nada, não inspecionaram
nada. Como eu iria assinar?
Folha - O que não ficou claro é por
que o sr. foi reconduzido ao cargo
em 2000, um ano antes de vencer
seu mandato, e logo depois veio a
crise e a sua destituição.
Bustani - Fui reconduzido por
aclamação, com apoio dos EUA e
da Rússia -veja bem. Significa
que havia confiança no que eu fazia, apesar de ser um chato. Eles
pensavam: "Ele vai exigir respeito
à convenção [de controle das armas químicas", vai fazer tudo certinho, mas pelo menos nós já sabemos que ele não vai beneficiar
nem um lado, nem outro".
Folha - Então...
Bustani - Então apareceu esse
John Bolton (subsecretário de Estado dos EUA para assuntos de
desarmamento), que é um antimultilateralista, um anti-ONU,
um prepotente, querendo mandar em tudo. Para você ter uma
idéia, é aquele sujeito que defendeu publicamente que a ONU poderia perder dez andares que não
faria a menor falta. É daqueles que
não acreditam em nada e em nenhuma organização internacional
em que os EUA não tenham 100%
de controle. Isso vale para o Protocolo de Kyoto, para a Convenção de Armas Químicas, para a
Corte Internacional Penal. O que
eles queriam exigir de mim era a
cessão de parte da soberania, a
aceitação de um certo monitoramento, de uma certa limitação. E
isso ninguém que tenha brios pode aceitar. A Opaq é uma organização internacional. Se eles querem transformá-la em norte-americana, que assumam isso,
ponham a sede em Washington,
uma placa na frente, e acabou-se.
Mas, enquanto for internacional,
eles não podem mandar em tudo.
Folha - Houve algum problema
específico, pontual?
Bustani - As coisas pioraram
quando me recusei a passar informações sobre outros países para
os EUA e desandaram de vez
quando desviei o encarregado de
orçamento de função, mandei
três outros para a rua e rejeitei os
funcionários que eles queriam
impor. Ficaram irritadíssimos, inclusive porque o tal encarregado
do orçamento estava lá desde
1993, antes da minha gestão.
Folha - Por que o sr. o transferiu?
Bustani - Porque descobri que
ele não entendia nada de orçamento, não atuava a favor dos interesses da organização e sim dos
EUA e era manipulado politicamente. O orçamento vinha pronto dos EUA e ele apenas aplicava,
e eu queria ampliar os investimentos nos países em desenvolvimento, especialmente para o uso
da química para fins pacíficos, para desenvolver os países. O Bolton
telefonou: "Bustani, isso não vamos admitir". Eu respondi: "Mas
sou eu o diretor-geral e eu é que
não admito que o sr. venha me
dar ordens". Foi o começo do fim.
Folha - Sempre o orçamento...
Bustani - Pode reparar em todos
os organismos que se dizem internacionais, multilaterais, que o
chefe da administração e do orçamento é sempre norte-americano. É para saber se os pobretões,
os idiotas, os ignorantes estão
usando o dinheiro direitinho. A
maneira mais eficaz, mais direta
de os EUA exercerem seu controle em tudo é via orçamento. Eles
financiam entre 22% e 25% de organismos como a ONU, e em segundo lugar vem o Japão, que
contribui com 10% a 21%. Como
o Japão tem alinhamento automático com os EUA, os dois juntos somam praticamente metade
do Orçamento. Fica muito difícil
dirigir um organismo desses sem
obedecer ao comando deles.
Folha - Qual a sua opinião sobre a
declaração do secretário do Tesouro, Paul O'Neill, de que o Brasil precisa aprender a usar bem os recursos do FMI, sem mandá-los direto
para contas na Suíça?
Bustani - Nenhuma pessoa de
bom senso pode achar razoável
que um representante oficial de
um país faça críticas a outro utilizando-se da sua posição. Isso causa um impacto imensurável no
outro país, especialmente às vésperas de eleições e numa situação
econômica que não está fácil. Ele
foi muito infeliz. Não se pode admitir uma intromissão em assuntos internos nem que se acuse o
país como um todo de corrupção.
Folha - Que tipo de exigência os
norte-americanos faziam na Opaq?
Bustani - Queriam impor como
verdade a percepção de que eles
são confiáveis o bastante para impedir reais inspeções no território
deles, mas teríamos que ser muito
eficientes inspecionando os demais países. A filosofia deles é:
"Quem precisa de controle são os
outros". E, pior, chegaram a exigir
o que seria impossível cumprir:
que o organismo repassasse aos
funcionários norte-americanos
os relatórios de inspeção feitos em
outros países. É inadmissível!
Folha - Quais países?
Bustani - Países sobre os quais os
EUA nutriam enorme desconfiança. Depois esses países passaram a ter confiança em mim porque viram que eu não seria desleal
com eles nem repassaria informações sobre eles para os EUA ou
outro país. O grau de confiança
em mim foi tão grande que, quando assumi a direção geral, havia
87 países filiados e, quando saí, já
eram 145. O melhor exemplo de
que eu fazia uma gestão não-discriminatória e apolítica foi a adesão de países como Jordânia, Iêmen, Emirados Árabes, Argélia,
Marrocos, Irã e até o Sudão, que
tinha sido atacado três anos antes
pelos EUA como detentor de arsenal químico. Havia negociações
com a Líbia, o Egito e o Iraque. Já
foram feitas mais de 1.100 inspeções. Nunca tive problema com
nenhum país, exceto os EUA.
Folha - Mesmo com os demais que
pesquisam armas químicas?
Bustani - Nem com eles.
Folha - Qual foi o papel do Brasil
quando eles pediram sua cabeça?
Bustani - Aí entra a segunda parte da minha odisséia, que foi a
parte mais difícil, a mais penosa.
O Bolton olhou na minha cara e
disse que eu tinha que sair no dia
seguinte, que fariam uma festa,
prestariam homenagens. Como
se eles fossem donos de Haia [sede da Opaq", da organização e do
mundo, além de donos da minha
vida. E eu respondi que não. Se
quisessem, que me tirassem.
Folha - E sua mágoa com o Brasil?
Bustani - A grande chave na disputa era o apoio da América Latina. Os representantes da Ásia e da
África deixaram claro que não se
mobilizaram porque a América
Latina não se mobilizou. E por
que não se mobilizou? Porque o
Brasil não se empenhou. Se o Brasil não se empenhou, estava dizendo sub-repticiamente alguma
coisa. Na votação, quem ficou comigo firmemente foram Rússia,
China, Cuba, Irã, Belarus e México. O Itamaraty foi muito esperto:
iludiu, dando a impressão que me
apoiava. Não era verdade. Mas
quero deixar claro que, no meu
país, tive apoio do Congresso, da
opinião pública e da imprensa.
Folha - Como recebeu a comunicação de que estava sendo retirado
do posto de cônsul em Londres, como punição por uma entrevista?
Bustani - Você pode imaginar.
Estou sem posto, sem casa, sem
função. Minha mobília está em
contêineres num porto holandês.
Folha - O que espera agora?
Bustani - Espero que um novo
governo, seja de que partido for,
encontre alguma utilidade para
mim. Que corrija essa situação.
Eu tenho 57 anos, 37 de carreira, e
não perdi a confiança do meu
país, como disseram no telegrama
em que me retiraram de Londres.
Nem sequer perdi a confiança do
meu governo. Perdi a confiança
de um setor da administração.
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