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JANIO DE FREITAS
Escola do crime
Dentre os números, poucos,
presentes na informação, o
escolhido para dar ao fato a dimensão noticiosa foi o 147. Em
todos os jornais impressos, de TV
e de rádio: 147 presos fogem pela
frente em delegacia de São Paulo.
Foi no 27º DP. Nos números considerados irrelevantes, e por isso
soterrados na avalanche de palavras, figuravam estes outros: a cadeia do 27º DP, com capacidade
para 30 presos, continha 190.
O que é mais expressivo, que
147 tenham fugido ou que 190
pessoas sejam acumuladas no espaço para 30? Os jornalistas que
fizeram a escolha não erraram. O
jornalismo faz a operação complexa de lançar um imenso jornal
de um dia para o outro, às vezes
em horas, mas é uma das atividades mais lerdas, um acúmulo de
muitas burocracias que leva décadas para dar um passo além da
repetição do que faz e como faz
todos os dias.
Os jornalistas não erraram
também porque sua escolha
emergiu do sentimento social, e
portanto deles próprios, de que o
mais ameaçador para a sociedade é a fuga dos presos. O demais é
da responsabilidade da polícia,
do sistema carcerário, do governo.
Apesar dessas duas fortes razões, o jornalismo ainda chegará
à unanimidade de títulos assim:
"Cadeia para 30 presos tinha 190:
147 fugiram". Então os valores
humanos e os princípios ditos civilizados terão conquistado alguma presença.
É inútil a tentativa de imaginar
as condições, sejam as físicas ou
as psicológicas, de 190 pessoas
que se oprimem no espaço para
30. Que última atitude ainda humana, antes que o desespero desperte a besta-fera ou a degradação anule até o instinto, pode alguém tomar ali senão a busca da
fuga?
No Brasil enraizou-se a idéia de
que a cadeia é escola do crime.
Será a cadeia? Ou a escola do crime é a sociedade que, por suas representações políticas e institucionais, cria e preserva condições
das quais o ser humano é levado
a sair como ser desumano, se ainda não o era depois das experiências precedentes?
Enjaular 190 pessoas no espaço
para 30 é tão normal que disso só
se sabe, quando se sabe, a meio
da leitura persistente de uma notícia desagradável. O governador
Geraldo Alckmin não recebeu críticas pela fuga, facilitada por um
carcereiro, até porque, como é
próprio da mídia paulista, o episódio negativo para a vida paulistana foi depressa esquecido.
No Rio, os governantes são surrados pela mídia global porque
um bando de presos, todos há
muito preparados para agir como seres desumanos, trucidaram
30 rivais e ainda um guarda. Não
se sabe, aliás, o que mais motiva
as críticas, se o fato de que os governantes, como os de São Paulo,
não adivinharam que um carcereiro abriria as grades para a rebelião, ou se o chamado de um
pastor evangélico, aceito no presídio, para aplacar o conflito. A mídia do catolicismo faz por ignorar
que um pastor evangélico só é
chamado por presos aos quais
faltou um pastor católico.
Assim como a polícia não pode
prever onde haverá mais um dos
diários seqüestros em São Paulo
e, no Rio, outro dos constantes
ataques de traficantes, não há como prever a ação nefasta de um
carcereiro comprado ou ameaçado. Os governantes não têm culpa
nas ocorrências de prevenção impossível. Mas os casos de São Paulo e Rio deveriam soar como berros de alarme, e alarmante é que
não sejam ouvidos assim.
As duas faces da ferocidade -a
da cadeia de São Paulo e a do
massacre no Rio- são evidências clamorosas de que a escola
do crime e seus frutos atingem o
paroxismo. Não são as primeiras
evidências, é claro. Mas as circunstâncias, os locais e a bestialidade exibidas clamam -em vão,
vê-se- por um basta na exploração política da violência e pela
volta ao ponto de partida, enfim
com seriedade, nas reflexões sobre modos de esvaziar a escola do
crime. Enquanto há tempo. E as
duas mais ricas e bem dotadas cidades do país mostram, mais
uma vez, que não há muito tempo.
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