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MERCADO GUERRILHEIRO
Comerciantes fornecem gasolina, comida, cerveja e remédio às bases revolucionárias e recebem em ouro e bolívares venezuelanos
Brasileiros abastecem as Farc na fronteira
KÁTIA BRASIL
ENVIADA ESPECIAL A SAN FELIPE
Comerciantes brasileiros conhecidos como regateiros fornecem comida, cerveja, remédios,
gasolina e outros produtos para
bases das Farc (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia)
montadas na região da tríplice
fronteira entre Brasil, Colômbia e
Venezuela.
Como forma de pagamento, os
brasileiros recebem em ouro ou
bolívares venezuelanos. A Polícia
Federal suspeita que alguns deles
tragam cocaína da Colômbia.
No final de maio, a Agência Folha viajou com um regateiro até
San Felipe, no Departamento (Estado) de Guainía, na Colômbia, ficou em contato com guerrilheiros
durante quatro dias e observou
como funciona o domínio das
Farc sobre a região.
Por questão de segurança, já
que os guerrilheiros são avessos a
entrevistas, as repórteres não se
identificaram como jornalistas
-disseram ser
pesquisadoras de
uma universidade e
parentes do dono
do barco.
Os regateiros partem de São Gabriel
da Cachoeira (850
km a oeste de Manaus) em barcos de
médio porte conhecidos na Amazônia
como regatões.
Viajam por quase
40 horas, rio Negro
acima, lotados de
suprimentos e passageiros.
Para vender os
produtos em San
Felipe, as Farc cobram pedágio dos
regateiros. "Tive
que dar 50 litros de
diesel", disse um
deles.
Na viagem feita
pela Agência Folha,
o regatão saiu às
8h10 do dia 24
(10h10 em Brasília),
sem fiscalização na
Capitania dos Portos, com um total de 40 t de mercadorias e 26 pessoas. No dia seguinte, às 10h30, passou por Cucuí, localidade brasileira na tríplice fronteira, e foi vistoriado por
um soldado do Exército e um policial federal, que pediram notas
fiscais das mercadorias e carteiras
de identidades dos passageiros e
tripulantes.
Em Cucuí, desembarcaram sete
pessoas, incluindo a família de
dois militares do 4º Pelotão Especial de Fronteira. Seguiram no
barco garimpeiros rumo a uma
mina na Venezuela. Às 14h20, o
regatão partiu, seguindo pela
margem colombiana do rio Negro. Chegou às 22h a San Felipe.
Com duas ruas e uma praça, San
Felipe parece uma cidade abandonada. Antes da chegada das
Farc, recebia turistas e tinha cerca
de 600 habitantes. Hoje, tem 218,
segundo os guerrilheiros. A maioria fugiu temendo o recrutamento
forçado pela guerrilha.
A prefeitura, a corregedoria de
Justiça e o posto policial foram fechados depois da ocupação pela
guerrilha em 1998. Funcionam
hoje um hospital, com um único
cirurgião, e uma escola com 153
crianças em regime de internato.
Quem dá as ordens é um guerrilheiro que estudou em Cuba, o comandante Hugo, 23. Moradores e
guerrilheiros dizem que o comandante, com 1,55 m, é o responsável por aplicar sentenças de morte
a quem não cumpre suas ordens.
Segundo os regateiros, em dezembro, o povoado perdeu o único padeiro, que foi morto depois
que a guerrilha descobriu que ele
passava informações ao governo.
Em fevereiro, um garimpeiro
brasileiro teria se desentendido
com Hugo durante uma bebedeira no bar local, o Cotilitodance.
Teria sido fuzilado na praça.
Há três meses, um guerrilheiro
tentou estuprar uma adolescente.
"Morreu também fuzilado a mando de Hugo", disse um regateiro.
Nos quatro dias de estada em
San Felipe, só no terceiro o comandante Hugo chegou ao povoado. Ele ficou no local por nove
horas e retornou levando parte
das mercadorias brasileiras.
Érica, 15, guerrilheira
Três guerrilheiros acompanharam a reportagem de perto, fazendo vistorias na bagagem e questionando sobre o real motivo da
viagem: o subcomandante Horácio Pescadillo, 27, Tony (um ex-estudante de arquitetura em Bogotá), 29, e Érica, 15.
Érica é uma garota de 1,82 m,
com uma cicatriz no queixo, herança de um combate. Como os
homens, veste farda e acessórios:
um fuzil AK-47 e um colete com
12 kg de munição.
Érica diz ter deixado a família e
os estudos no ensino fundamental em Bogotá para ingressar na
guerrilha aos 12 anos.
"Estou na peleja [luta], não sei
quantos matei, matei muitos. Eles
[os soldados colombianos] nos
matam também. Se chegarem
aqui, temos que fugir para o mato", afirmou.
A moeda corrente em San Felipe é o ouro ou o bolívar venezuelano. Um grama do metal vale na
cidade 14 mil bolívares, o que dá
uns R$ 25 (menos do que a cotação do ouro no Brasil, R$ 34). Os
regateiros vendem 1 kg de frango
por 3.500 bolívares, 1 kg de arroz
por 1.800 bolívares, 1 litro de gasolina por 4.000 bolívares.
É de São Gabriel da Cachoeira (a
850 km oeste de Manaus) que sai
o combustível, frango, arroz, óleo,
açúcar, biscoitos, cerveja, peças
de reposição de motor de popa e
remédio para malária que chegam à guerrilha por San Felipe.
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