São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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NO PLANALTO

Serra deixa o amigo FHC apanhando sozinho

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

No epicentro da refrega eleitoral, Serra vem devotando lealdade extrema a dois escassos amigos: a imagem refletida no espelho e a sombra projetada na calçada. Atento ao próprio umbigo, abandonou FHC ao relento, sob bordoadas.
Serra se comporta como personagem da fábula de Esopo. Aquela sobre os dois peregrinos que deram de cara com um urso na estrada.
Um deles, apavorado, escalou uma árvore e se escondeu. O outro se jogou no chão, fingindo-se de morto. O urso chegou perto, farejou-lhe a orelha e foi embora.
O que estava na árvore desceu. Perguntou: "O que é que o urso cochichou no seu ouvido?" E o outro: "Ele me aconselhou a não viajar mais com quem abandona os amigos na hora do perigo". Moral: é na dificuldade que se prova a amizade.
O grande urso que cruza a trilha eleitoral de Serra é o risco de associação de sua candidatura com o lado escuro da era FHC. O candidato governista lava as mãos.
Restringe sua responsabilidade à passagem pelo Ministério da Saúde. Num surto de amnésia seletiva, enfia no baú coisas como o estágio na pasta do Planejamento.
No debate da Record, apertado por Lula, Ciro e Garotinho, Serra subiu na árvore: "Quero discutir o futuro". Por trás da ramagem, assistiu calado ao espancamento da gestão FHC.
Uma semana atrás, antes de embarcar para a África do Sul, o presidente se imaginava a salvo da baixaria da campanha. Festejou, em conversa no Alvorada, a boa vontade da oposição.
Só percebeu a mudança de humores em Johannesburgo. Lendo o resumo do noticiário dos jornais brasileiros, um produto da Radiobrás que lhe chega às mãos diariamente, irritou-se com certas "descortesias".
Pelo telefone, deu ordens para que o governo reivindicasse na Justiça Eleitoral o direito de responder a críticas levadas à TV por Ciro Gomes. Antes, já havia estimulado a Petrobras a defender-se de ataques de Lula.
De volta a Brasília, encontrou uma campanha diferente. O tratamento benévolo sucumbiu de vez à hostilidade. Poderia fingir-se de morto. Mas urso de campanha, diferentemente do animal da fábula, morde. Achou melhor reagir.
Embora reprove a tática do comitê de Serra, FHC não pode alegar surpresa. O velho amigo mantém na campanha o comportamento de sempre.
Na fase de elaboração do Plano Real, ainda sob Itamar Franco, Serra havia feito muxoxo. Em reunião no apartamento funcional de FHC, à época ministro da Fazenda, reagira a explicações do economista Edmar Bacha com um silêncio ensurdecedor.
O encontro serviu para que os técnicos a serviço de FHC explicassem ao alto tucanato o que estava por vir. Um dos pais do Real ainda guarda a agenda em que anotou fragmentos da reunião.
Fragmentos como a reação de um irascível Mário Covas: "Todo mundo fala aqui, pô. Só o Serra fica quieto. Ele é quem deveria falar mais". Presentes, Tasso Jereissati e seu pupilo Ciro Gomes, naquela ocasião um festejado grão-tucano, aquiesciam com movimentos de cabeça.
Serra calou, segundo confessaria depois a Sérgio Motta, porque discordava de boa parte do receituário que Bacha apresentara em nome do resto da equipe (Pérsio Arida, André Lara Resende, Pedro Malan, Clóvis Carvalho e Winston Fritsh).
Mais tarde, feito ministro por FHC, Serra foi tachado de "sabotador" por colegas de Esplanada, em diálogos mantidos atrás das portas. Mesmo no Planalto ouviam-se críticas ao seu comportamento.
Serra influía no governo como poucos. Mas nunca desceu da árvore. Referendou o nome de Ricardo Sérgio para a diretoria do Banco do Brasil. Quando o apadrinhado foi pilhado agindo nos bastidores da privatização "no limite da irresponsabilidade", acomodou sobre os ombros de Clóvis Carvalho toda a culpa pela indicação.
Ora, se durante oito anos Serra jamais teve nada a ver com nada, por que teria agora, numa fase em que a conflagração da cena eleitoral faz da ruína econômica do tucanato um fenômeno à procura de uma cara?
Que os erros assumam as feições de FHC. Que o presidente administre sozinho os seus demônios. Demônios cujos chifres crescem junto com a ascensão de Serra nas pesquisas eleitorais.

 

Do fundo do armário: sob investigação do Ministério Público, da Polícia Federal e da Receita, Ricardo "no limite da irresponsabilidade" Sérgio está incomodado com as tentativas de arrancá-lo de seu habitat natural, a sombra. Queixa-se de abandono. Entre quatro paredes, diz que jamais fez nada sozinho. Menciona reuniões que manteve com o próprio FHC. A turma do deixa-disso foi acionada.

 

Novembro negro: Brasília trabalha com a hipótese de que os EUA declarem guerra ao Iraque antes das eleições para o Congresso americano, marcadas para novembro. Prevê-se que as bombas e os seus efeitos sobre o preço do petróleo irão eletrificar a atmosfera econômica. FHC acha que seria recomendável que o próximo presidente do Brasil tivesse meio quilo de gordura de estadista sob a cútis.


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