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ENTREVISTA
Cientista político sugere a Lula ousadia dos suecos, que "inventaram" o Estado de bem-estar contra ortodoxia dos anos 30
Para Fiori, "revolta social" será crescente
CLAUDIA ANTUNES
COORDENADORA DE REDAÇÃO DA SUCURSAL DO RIO
Um dos principais críticos do
projeto tucano dos anos 90, o
cientista político José Luís Fiori
parece tão insatisfeito com o rumo do governo Lula quanto o resto da esquerda brasileira. Mas ele
acredita que o problema vai muito além do governo e foi buscar
suas raízes na história dos socialistas e de suas experiências no
Executivo.
Em sua pesquisa, Fiori, que é
professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), alinhou as dificuldades dos
socialistas de terem programas
originais de "gestão do capitalismo", justamente porque nasceram para lutar pelo fim do sistema, e não para administrá-lo.
Essa retrospectiva histórica foi o
tema desta entrevista à Folha, na
qual Fiori, 58, afirma que o Brasil
não pode suportar, como a Europa suporta, as políticas da Terceira Via, última etapa do revisionismo social-democrata.
Ele cobra do governo petista "a
ousadia dos suecos", que nos
anos 30 inventaram o Estado de
bem-estar social, "na contramão
da ortodoxia da época". Mas descarta qualquer mudança enquanto a política econômica estiver na
mão de "militantes do PSDB".
"Não adianta sentar em cima da
tampa da panela. É melhor olhar
de frente e assumir que a maioria
dos brasileiros não ganha nada
com esse projeto e não tem o que
perder no médio prazo. Portanto,
é de se esperar uma revolta social
crescente", diz Fiori, autor de
"Brasil no Espaço" e co-autor de
"Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações", entre outros livros.
Abaixo, os principais trechos da
entrevista:
Folha - Qual a relação entre o governo Lula e seu estudo sobre as dificuldades da esquerda de gerir o
capitalismo?
José Luís Fiori - O governo provocou minha reflexão, mas faz
tempo que acompanho esse tema.
Os socialistas sempre discutiram
muito questões de estratégia e de
organização partidária, ou grandes temas teóricos, mas muito
menos a gestão do Estado e da
economia capitalista e, em particular, o problema de sua recorrente transformação quando chegam ao governo,
explicada de modo simplista pela
"teoria do purgatório": a necessidade de passar um
tempo de joelhos
para demonstrar
que não vão mais
jogar pedra em
ninguém.
Meu estudo diz
respeito a um grupo minoritário
dentro e fora do
governo de coalizão do presidente
Lula, mas vai muito além do governo, partindo da
Revolução Inglesa
de 1646/48.
Folha - O senhor
fala de um enigma que nasceu com
o pensamento socialista e que continua sem resposta. Pode explicar
melhor isso?
Fiori - Gerrard Winstanley, líder
intelectual da ala radical do exército de [Oliver] Cromwell, talvez
tenha sido o primeiro a apresentar um programa comunista de
governo para uma república. Para
ele, não haveria liberdade enquanto não houvesse igualdade
econômica, que só seria alcançada com a propriedade comunitária da terra.
Essa idéia reapareceu várias vezes no século seguinte, mas talvez
tenha sido com [Jean-Jacques]
Rousseau que ela deu um salto estratégico, quando ele propôs, na
segunda metade do século 18, que
o Estado deveria ser o único proprietário, eliminando-se a origem
de todas as desigualdades.
No século 19, essa idéia assumiu
uma forma mais consistente no
programa mínimo de governo
proposto por [Karl] Marx no final
do Manifesto Comunista, de 1848.
Só que Marx aumentou a dificuldade da equação ao propor simultaneamente a estatização da propriedade privada como caminho
para o socialismo e como ponto
de chegada do socialismo, quando a propriedade privada e o Estado deveriam desaparecer.
Desde então, ora a propriedade
e o Estado devem desaparecer,
ora aparecem como instrumentos
indispensáveis de poder para a
construção do socialismo, numa
circularidade que confunde os socialistas há muito tempo.
Folha - Como a esquerda lidou
com essa contradição?
Fiori - Houve três respostas diferentes. A primeira foi a dos socialistas utópicos, discípulos mais diretos de Winstanley, e depois dos
anarquistas, que se colocaram
contra todo tipo de poder e de Estado. Eles sempre defenderam a
coletivização da terra e depois formas cooperativas de produção industrial, além da democracia direta. Sempre se negaram a discutir o que fosse uma gestão socialista do capitalismo.
A segunda resposta foi a das revoluções comunistas, que optaram pela coletivização da propriedade e pela direção estatal e centralizada da economia, na linha
anunciada no Manifesto. A crise
dessas experiências colocou-as no
limbo da história e até hoje não se
fez uma avaliação rigorosa de seus
sucessos e fracassos.
Mas foram os socialistas europeus que mais pensaram essa
contradição e que definiram os
dois principais projetos de uma
espécie de gestão igualitária do
capitalismo.
Folha - Que projetos foram esses?
Fiori - O primeiro foi o dos partidos social-democratas ou trabalhistas da Alemanha, da Inglaterra e dos países nórdicos, que buscaram a construção do chamado
Estado de bem-estar social, com
políticas de pleno emprego e proteção universal, aplicadas por
quase todos os governos social-democratas entre 1946 e 1980.
O segundo projeto, cujo principal formulador talvez tenha sido o
Partido Comunista Francês, partia do conceito de "capitalismo
organizado" e apostava na possibilidade de um sistema mais igualitário, regulado e planejado a
partir de um núcleo econômico
estratégico estatal. Seu paradoxo é
que acabou sendo o programa vitorioso de vários governos do
pós-Segunda Guerra, todos conservadores, sobretudo na França
e no Japão, sem contar outros casos de desenvolvimentismo fora
do núcleo das grandes potências.
Folha - O que levou os social-democratas a desistir
do projeto de derrubar o capitalismo?
Fiori - Essa história pode ser resumida nas grandes
ondas revisionistas em relação às
idéias originais de
Marx, para quem
o capitalismo era
sinônimo de progresso, mas também de desigualdade e crises sucessivas, que acabariam abrindo o
caminho de sua
superação. Essas
revisões aconteceram, sobretudo, em função de estratégias eleitorais.
O primeiro e mais famoso dos
revisionistas, o alemão Eduard
Bernstein, propôs, em 1894, uma
primeira adequação das idéias de
Marx às novas formas do capitalismo. Para ele, a natureza do sistema havia mudado e já não tendia mais a uma crise final nem a
uma pauperização contínua da
classe operária. O socialismo seria
uma construção lenta a ser feita
com base no poder conquistado
eleitoralmente.
Essa tese já era vitoriosa na hora
da segunda onda revisionista dos
anos 50 e 60, quando foi consagrada pela social-democracia alemã. Abandona-se a idéia da revolução e da estatização, só justificada em nome da eficiência econômica, e o que se propõe é a redistribuição de renda e de oportunidades por meio do pleno emprego e de políticas fiscais. Essa foi a
grande mudança: socialistas e social-democratas começaram a ver
no sucesso do capitalismo o caminho do seu próprio sucesso, a
considerar que as políticas pró-capital seriam também, a médio
prazo, pró-trabalho.
Folha - O Estado de bem-estar social foi mesmo obra dos social-democratas ou fruto de um momento
histórico específico?
Fiori - As duas coisas. Seu impulso fundamental veio dos social-democratas, mas não há dúvida
de que a partir de 1945 foi uma alternativa que contou a seu favor
com o efeito-solidariedade da
guerra e com a concorrência do
comunismo, para não falar no
apoio americano, até os anos 70, à
autonomia das políticas econômicas nacionais.
Antes disso, porém, houve a coragem dos social-democratas suecos, caso quase único de invenção
de um novo caminho na contramão da ortodoxia de uma época.
Em coalizão com o Partido Agrário, eles conseguiram tirar a Suécia da recessão entre 1933 e 1938, inventando o que
seria um consenso
quase universal
até o início da era
neoliberal: o Estado de bem-estar e
as políticas ativas
no campo macroeconômico, as
mesmas que receberam depois o
nome de keynesianas [do inglês
John Maynard
Keynes].
Folha - Quais foram as circunstâncias dessa experiência?
Fiori - Foi na
Suécia que pela
primeira vez um partido social-democrata fez maioria no Parlamento e enfrentou o problema de
gerir uma economia capitalista.
Eles utilizaram uma política econômica anticíclica inspirada pelos
economistas da Escola de Estocolmo. Inventaram políticas de criação de empregos, de construção
de habitações populares, de proteção social universal etc.
No início, foram as exportações
que puxaram a economia para fora da crise, mas, a partir de 1934, o
crescimento econômico sueco já
era comandado pela demanda interna, empurrada pelo investimento público. Os social-democratas suecos também não tiveram receio de recorrer a políticas
de corte mercantilista, protegendo sua produção doméstica, em
particular a agricultura. São coisas que hoje parecem simples e
até antiquadas, mas que foram revolucionárias no seu tempo.
Folha - O que o senhor chama de
"teoria do purgatório" é um fenômeno recente?
Fiori - Não, é recorrente desde o
início do século 20, quando os socialistas participaram de governos de coalizão durante as crises
inflacionárias que se seguiram à
Primeira Guerra. Na maioria dos
casos, eles ficaram paralisados e
foram derrotados pela "síndrome
de [Rudolf] Hilferding", o grande
economista marxista e social-democrata austríaco.
Ao assumir o Ministério da Fazenda da Alemanha, em 1928, Hilferding apostou numa política ortodoxa que aumentou a recessão
e o desemprego, sem conseguir
controlar a inflação. Como conseqüência, foi expelido do ministério. O governo foi entregue logo
depois a Hitler. Algo análogo, mas
com efeitos menos trágicos, aconteceu com o Partido Trabalhista
inglês, em 1929, e com o governo
de Léon Blum, na França [1936/
1937].
O fenômeno voltaria a ocorrer
bem mais tarde.
Em 1982, por
exemplo, os socialistas franceses
responderam à
crise do franco
optando por uma
política macroeconômica ortodoxa.
Folha - Mas aí o
quadro internacional já havia mudado de novo, não?
Fiori - - Na verdade, a convergência entre políticas pró-capital e
pró-trabalho só
existiu nos 30
anos posteriores à
Segunda Guerra,
na chamada era
de ouro do capitalismo. Não existiu antes nem depois, durante a
restauração conservadora, quando o capitalismo voltou a ser igual
ao que havia dito Marx: uma gigantesca força geradora de globalização e de progresso, mas, ao
mesmo tempo, de desigualdade e
crises.
Folha - Sem revolução no horizonte, qual pode ser a resposta da
esquerda a essa nova era?
Fiori - A única resposta até agora
foi a terceira onda revisionista,
com o Novo Trabalhismo de
Tony Blair na Inglaterra e a Terceira Via de Blair, do alemão
[Gerhard] Schröder, do francês
[Lionel] Jospin e do italiano [Massino] D'Alema e de Fernando
Henrique Cardoso. Só que agora
não se tratava mais de concessões
em nome da eficácia eleitoral,
mas de uma nova estratégia de
gestão do capitalismo que propunha desmontar parte do que foi
construído antes.
As políticas pró-capital de tipo
neoliberal provocaram, em 20
anos, uma reconcentração gigantesca da riqueza, além de reduzirem o emprego e o salário em todos os países onde foram aplicadas. Hoje, os socialistas chegaram
a um beco que parece quase sem
saída, adotando uma estratégia
alheia que os descaracteriza.
Folha - No caso do governo Lula,
há saída para esse beco?
Fiori - Acho que ainda cabe a Lula, no tempo que lhe resta do
mandato, demonstrar se terá ou
não a ousadia dos suecos em 1930,
para inventar um novo caminho
para este país. Não se trata de fazer da Suécia um modelo a ser repetido, mas de ter a coragem de
inovar e de não se submeter ao
feijão com arroz imposto pelos
Tesouros do mundo, sempre.
Folha - Isso ainda é possível?
Fiori - É perfeitamente possível.
Mas tem que haver antes de mais
nada a disposição de mudar, de
inovar, mesmo ao preço de errar.
Quem não erra
não avança.
Mas será impossível que isso
aconteça enquanto o núcleo da política econômica
continuar nas
mãos de pessoas
que são militantes, eleitores e até
parlamentares do
PSDB, que, além
de estarem ligados
ao principal partido da oposição,
operam como representantes ou
conexão dos interesses financeiros
internacionais,
públicos e privados.
Essas pessoas não querem descobrir novos caminhos. Estão satisfeitas com o que está aí. Não só
não sentem falta de uma opção
como lutam contra qualquer tipo
de alternativa. Para elas, a hora da
utopia já chegou, é só sentar e esperar uma ou duas décadas mais,
até que o capital internacional
descubra a beleza dos mercados
brasileiros, apesar do estado de
recessão, e a credibilidade infinita
dos seus bons gestores.
Folha - Essa utopia é sustentável
politicamente?
Fiori - Ao contrário do que muitos pensam, ela atende plenamente aos interesses de todas as grandes facções capitalistas e de amplos setores rentistas da classe
média -basta ver os dados sobre
os balanços e os lucros dos bancos
e das grandes empresas industriais nestes anos recentes. Por isso ela dura há anos.
O problema é que ela é radicalmente desagregadora pelo lado
do trabalho e do povo, porque
não produz crescimento, nem
emprego, nem renda, nem traz ou
promete mobilidade social.
Por isso nós temos uma sensação de quase esquizofrenia quando lemos o que dizem, por exemplo, os brasileiros reunidos recentemente na praia de Comandatuba, na Bahia, em torno das figuras
do ministro da Fazenda do governo Lula e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, hoje
aclamado como a principal liderança da direita brasileira, e vemos o que está acontecendo com
o povo e a sociedade, que estão estourando por todo lado.
E não adianta sentar em cima da
tampa da panela, é melhor olhar
de frente e assumir como um dado de realidade que a maioria dos
brasileiros não ganha nada com
esse projeto e não tem o que perder no médio prazo, portanto é de
se esperar uma revolta social crescente, gostem ou não os senhores
de Comandatuba.
Folha - É comum
a distinção entre
capital especulativo e capital produtivo. Essa diferença
acabou?
Fiori - A separação entre capital
especulativo-financeiro e capital
industrial é uma
ficção que não
existe mais, a não
ser no caso das fabriquetas e botequins da economia de mercado,
que, como dizia [o
historiador francês Fernand]
Braudel, nada tem
a ver com o capitalismo, o mundo
dos grandes predadores, que vivem do lucro extraordinário e revolucionam permanentemente as
condições de produção e troca.
Folha - Essa remontagem histórica o deixa pessimista?
Fiori- Não. Eu vejo o beco em
que estão as idéias e as políticas
socialistas como um desafio.
Acho que hoje existe muito
pouco espaço e ânimo para alguma inovação entre os social-democratas europeus, que estão divididos e paralisados em quase
todos os campos.
Em compensação, nós vivemos
num país tão desigual que é impossível que nossa sociedade não
encontre um caminho inovador.
O que pode ser suportável na Alemanha, na França ou mesmo na
Espanha, ancorada na União Européia, não é suportável no Brasil.
Aqui a Terceira Via é de direita,
o que torna uma obrigação pensar um novo caminho e uma nova
estratégia de gestão igualitarizante do capitalismo brasileiro, mesmo que por meio de um doloroso
processo de tentativas e erros.
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