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OPERAÇÃO ANACONDA
Gravações mostram que grupo chegou a oferecer seus "serviços" para a campanha de Ciro Gomes durante a eleição de 2002
Quadrilha atuava em todo o país, diz PF
ANDREA MICHAEL
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A chamada Operação Anaconda nasceu de um procedimento
banal. Investigavam-se em Alagoas desvios de conduta de policiais federais. Após um ano e
meio de trabalho, a Polícia Federal reuniu evidências da existência de uma quadrilha que opera
em âmbito nacional.
A Folha obteve na semana passada informações, gravações e documentos confidenciais que expõem as entranhas da organização criminosa. Pratica crimes que
vão da lavagem de dinheiro e da
espionagem política à venda de
informações sigilosas. No ano
passado, operou no submundo
dos negócios eleitorais.
Relatório secreto da PF datado
de 9 de junho de 2003 resume em
176 páginas a ação da quadrilha.
Assina-o o delegado federal Cláudio Nogueira, de Brasília. Anota
os nomes de juízes, empresas e
funcionários públicos.
Até ministro é citado
O documento menciona três vezes um ministro do governo Lula.
Chama-se Ciro Gomes (Integração Nacional). Aparece nas páginas 54, 69 e 71 do documento. O
nome de Ciro foi captado em
grampos telefônicos feitos pela PF
com autorização judicial.
Foi citado pela primeira vez em
2 de setembro de 2002 por César
Herman Rodriguez. É agente da
Polícia Federal. Encontra-se preso em São Paulo. Em diálogo com
um de seus "sócios", disse que se
reuniria com um irmão de Ciro,
cujo nome não mencionou.
Em 16 de setembro de 2002, Rodriguez comenta, em diálogo com
outro integrante da quadrilha, a
reunião "com aquela pessoa". Referia-se, na opinião da PF, não
mais a um irmão, mas ao "candidato Ciro Gomes", que concorria
à Presidência da República.
O policial parecia buscar dados
sigilosos de uma investigação que
interessaria a Ciro. Queria os papéis "até as 13h" daquele dia, pois
"às 15h" estaria com o próprio
candidato. O interlocutor de Rodriguez dizia que seria difícil conseguir os dados em tão pouco
tempo. "A documentação é muito
volumosa", alegou.
Só um "relatório da Secretaria
de Presidência Complementar
(sic) tem cem páginas", disse o interlocutor. O órgão citado chama-se, na verdade, Secretaria de Previdência Complementar. É um
apêndice do Ministério da Previdência. Fiscaliza os fundos de
pensão. A PF paulista investigava
à época a Funcef, o fundo de previdência da Caixa Econômica Federal. Apuravam-se desvios de
US$ 58 milhões.
"Coisa para fazer barulho"
Para facilitar a obtenção dos papéis, Rodriguez estimula o interlocutor a oferecer uma "notinha"
a um escrivão da PF. Explicou assim o interesse pelos dados: "É só
coisa para fazer barulho".
Rodriguez voltou à carga no dia
seguinte, 17 de setembro de 2002,
em novo telefonema. Seu interlocutor, identificado pela PF como
Aloísio, disse que não havia tirado
as cópias porque entendera que
deveria aguardar o resultado de
conversa com o candidato.
O agente da PF diz no diálogo
captado pela escuta telefônica que
já havia falado "com o próprio Ciro". Voltou a enfatizar o interesse
pela papelada. Dali a 19 dias ocorreria, em 6 de outubro, o primeiro
turno das eleições presidenciais.
Ciro não passou ao segundo turno. Procurado pela Folha na sexta
feira, o hoje ministro disse que
nem mesmo conhece o policial
Rodriguez.
As incursões da quadrilha na
seara eleitoral não se limitaram
aos supostos contatos com Ciro
Gomes. Em 19 de setembro de
2002, um membro da quadrilha
identificado pela PF apenas como
Valcy telefona para um ex-policial
civil de Brasília chamado José
Marques Ferreira. É conhecido
como Mineirinho.
Valcy pergunta a Mineirinho se
ele conhece "algum gerente do
Banco do Brasil" a quem se pudesse fazer uma "proposta de negócio sobre desvio de campanha
política de Brasília".
Mineirinho diz possuir números e saldos de contas de campanha. Menciona contas com saldos
de "R$ 1 milhão, R$ 2 milhões e
R$ 14 milhões".
"Contas frias"
Sem citar nomes, Mineirinho
diz que "o pessoal está desviando,
mas não tem experiência, pois
desviam para eles mesmos". Afirma que "tem de haver um intermediário para fazer a operação".
Revela como seria feito o rateio:
"70 ficaria para eles e 30% para os
intermediários". O negócio seria
seguro, "pois as contas são frias,
pertencentes a fantasmas".
A investigação da PF foi tocada
até meados de 2003 sob a supervisão do Ministério Público e da
Justiça Federal de Alagoas. Só há
três meses, no dia 13 de agosto de
2003, o caso migrou para São Paulo, centro operacional da quadrilha. Àquela altura, os grampos da
PF já haviam captado os nomes e
as vozes de juízes que atuam na
capital paulista.
O quadro desenhado pela investigação é dramático. A quadrilha
operava, com rara desenvoltura,
no coração financeiro do país. Valia-se da estrutura da própria PF
em São Paulo. Possuía contatos
na Polícia Civil. Geria negócios de
norte -Santarém (PA)- a sul
-Passo Fundo (RS) - do país.
Agentes e juízes
A mobilidade do esquema era
assegurada pelo próprio Rodriguez e por um delegado da Polícia
Federal chamado José Augusto
Bellini. Encontrava-se em atividade até duas semanas atrás, quando foi preso. Possuíam esquemas
para desembaraçar contrabando
no aeroporto de Cumbica (SP) e
no porto de Santos (SP).
O conteúdo da escuta revela que
os agentes da PF agiam em parceria com juízes. Não se limitavam a
brecar investigações. Abriam e
conduziam apurações que visavam a extorsão de empresários.
Operavam com maior desenvoltura sob a jurisdição do magistrado João Carlos da Rocha Mattos,
preso na última sexta-feira.
Os documentos da PF citam outros dois juízes: os irmãos Casem
e Ali Mazloum. Não há vestígio da
voz de Ali nas gravações reunidas
durante a investigação. Apenas
Casem e Rocha Mattos foram ouvidos diretamente.
Casem é exposto em situações
constrangedoras. Num dos diálogos, encomenda ao agente Herman Rodriguez um grampo telefônico ilegal. Fora solicitado pelo
prefeito de Cotia (SP), Joaquim
Pedroso (PSDB), que suspeitava
de infidelidade da mulher.
Custo da escuta
O grampo ilegal era prática corriqueira da quadrilha. Numa das
conversas grampeadas, Rodriguez indagou a um parceiro sobre
o custo de uma escuta. O interlocutor disse que precisaria perguntar "ao pessoal". Com naturalidade, o agente federal Rodriguez indaga quanto foi cobrado "da última vez". E o interlocutor: "R$
1.000 por semana".
No caso da encomenda para o
prefeito de Cotia o preço seria "indigesto". Tratava-se de um aparelho celular, mais difícil de ser xeretado do que um telefone fixo. A
quadrilha, porém, não mediu esforços para atender ao pedido do
juiz Casem Mazloum.
Em contato com um suposto
primo do juiz, chamado Caled,
Rodriguez informa que está conseguindo obter dados cadastrais
dos proprietários dos celulares de
forma oficial. Requisitou-os à
companhia telefônica em nome
da PF. Alegou, em ofício, que o
prefeito de Cotia e seus familiares
estavam sendo ameaçados por
desconhecidos. Uma falsidade.
"Dez paus"
As falas de Rocha Mattos chocam pela crueza. Em conversa
com Rodriguez, no dia 23 de abril
de 2003, o próprio juiz revela que
certa vez concedeu habeas corpus
em troca de "dez paus". Receoso
de que estivessem sob escuta, o
agente alerta ao magistrado que
falava de seu "telefone celular".
Em outros diálogos com o mesmo Rodriguez, o juiz Rocha Mattos acerta o recebimento de dinheiro da quadrilha. Reivindica o
depósito em sua conta bancária
de R$ 50 mil. O interlocutor concorda. Acertam a simulação de
um contrato de empréstimo. O
magistrado afirma que, depois, se
não puder quitar o débito, paga
"com serviços jurídicos".
Nos diálogos da quadrilha surge
também o prenome de um desembargador paulista. A reportagem constatou que há, de fato, um
magistrado com o nome citado na
página oito do relatório da PF. O
jornal evita divulgar o nome do
desembargador porque não conseguiu localizá-lo.
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