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MEMÓRIA
Sociólogo, que morreu dia 4, afirmou em sua última entrevista que ação terrorista é "revolucionária" e que o governo é um desastre
Para Ianni, Lula frustra seu papel histórico
CLÓVIS SAINT CLAIR
FREE-LANCE PARA A FOLHA
A entrevista que segue, cujos
trechos a Folha publica com exclusividade, foi a última concedida pelo sociólogo Octavio Ianni
antes de morrer, no domingo passado, aos 77 anos.
Há cerca de três semanas, o professor emérito da USP e da Unicamp falou sobre globalização e
seus efeitos nos países periféricos,
seu foco de interesse nos últimos
anos e tema de "Capitalismo, Violência e Terrorismo" (Editora Record, 2004), que chega às livrarias
nos próximos dias.
Na análise do sociólogo, os
atentados de 11 de setembro, nos
EUA, e de 11 de março, em Madri,
são "ações revolucionárias", resposta à globalização que avança
"a ferro e fogo" no mundo árabe.
Ianni, integrante da geração da
sociologia brasileira que redimensionou estudos sobre escravidão e desenvolvimento (como em
"As Metamorfoses do Escravo",
de 1962, e "Industrialização e Desenvolvimento Social no Brasil",
de 1963), fez um diagnóstico duro
do governo petista e da esquerda.
"O governo Lula está demonstrando que não entendeu nada."
Atacou a atuação do presidente
como líder mundial -um "blefe"- e o discurso da esquerda
-"anacrônico". Para ele, Lula
frusta expectativas ao não "desempenhar o seu papel histórico".
Folha - O 11 de Setembro marcou
o início de uma nova era na geopolítica mundial. O que dizer do atentado de 11 de março na Espanha?
Octavio Ianni - A inquietação social, política e cultural é intensa e
pode resultar em protestos espetaculares. Classificar os atentados
como loucura terrorista é simplificar o problema. Os atentados
têm raízes nas condições sociais
extremamente difíceis experimentadas por povos agredidos
pelas corporações transnacionais
e que estão sendo induzidos a entrar na globalização a ferro e fogo.
O ataque de 11 de setembro atingiu dois pilares simbólicos dos
EUA: o militar, com o ataque ao
Pentágono, e o financeiro, no ataque às torres gêmeas.
O governo da Espanha entrou
numa guerra indo de encontro à
opinião pública. O mundo árabe,
ao contrário do que a mídia propaga, corresponde a um outro
modo de ser e o ataque no dia 11
de março foi uma manifestação
de protesto à adesão inexplicável
da Espanha à guerra no Iraque.
Ambos atentados foram ações revolucionárias. O que importa numa ação dessas não são as intenções dos agentes. Quando algumas pessoas derrubaram os portões da Bastilha queriam apenas
protestar contra o despotismo.
Ninguém imaginava que estava
fazendo a revolução.
Folha - As reações aos ataques
nos EUA e na Espanha foram diferentes. Por quê?
Ianni - Porque os europeus viram
que eles todos podem ser alvo
desse tipo de ação terrorista. Daí
manifestar solidariedade a um
país que devia ser integrado a
União Européia e que está trabalhando justamente para rachar a
UE, usando dessa oposição justamente para fazer o jogo da geopolítica norte-americana numa tentativa de se beneficiar de alguma
maneira com os EUA. Nesse sentido, os atentados não deixaram
de ser um aviso à Inglaterra.
Folha - A violência no Brasil produz vítimas em escala de guerra.
Por que essa estatística provoca
menos comoção que muitas guerras a quilômetros daqui?
Ianni - Faz parte da ideologia dos
setores dominantes minimizar,
porque isso prejudica a imagem
do país e atrapalha os negócios de
grandes companhias, a quem a
mídia está acoplada. Uma leitura
dos jornais do Rio e São Paulo revela que a mídia trabalha pela criminalização da sociedade civil.
Quem lê fica com a sensação de
que a sociedade está envenenada,
mas as matérias não vão à raiz.
Daí vem essa loucura, o boom da
indústria de segurança.
Folha - A desigualdade é apontada como fator da violência. O governo atua para resolvê-lo?
Ianni - O governo Lula está demonstrando que não entendeu
nada. Ele tinha o compromisso de
inaugurar uma nova orientação.
Só que para fazer isso é preciso
que se reflita sobre os problemas
reais. Foi um governo eleito com
expectativas excepcionais, mas
que não está conseguindo desempenhar seu papel na história. Descambou para uma retórica vazia,
que consiste em pronunciamentos inflamados, mas inócuos.
Folha - A política econômica é criticada, mesmo no governo. É possível deixar de se subordinar ao FMI?
Ianni - A Índia e a China são
exemplo de como aderir ao globalismo sem abdicar de um projeto
nacional, sem abrir mão de participar do centro decisório. No Brasil, isso não deu certo porque tanto os militares quanto os civis que
os sucederam entregaram o poder decisório a grandes conglomerados transnacionais. No Brasil, não há mais chances de se estabelecer um projeto nacional. É como no teatro ou no cinema. Em
muitos casos os atores simplesmente não estão à altura dos personagens que deveriam encarnar.
Folha - Como o sr. vê o esforço do
Lula para levar o Brasil à liderança
na América Latina? Trata-se de um
projeto nacional viável?
Ianni - Trata-se de fabricar manchetes. Aliás, ele está assessorado
por quem? Brasília é hoje a nave
dos insensatos. Estão todos descolados da história. Mas não é só
no Brasil. Na Argentina também.
Nem o Lula nem o Kirchner têm
condições de levar seus países a
executar um projeto nacional.
Folha - Lula foi recebido pela comunidade internacional como um
neo-socialista capaz de produzir o
globalismo de baixo para cima. Por
que goza dessa imagem ?
Ianni - A comunidade internacional sempre blefou a respeito desse
papel do Lula. Estão todos fazendo jogo de cena, o que de certo
modo anestesia a opinião pública.
Ou alguém acredita que o Schroeder ou o Chirac reconhecem esse
papel no Lula? Só se fossem tontos! Estão blefando, claro. E blefam porque o Lula está fazendo o
jogo geopolítico deles. É difícil dizer que Lula ou o Kirchner são
presidentes. São, no máximo, administradores de províncias no
mundo globalizado, fantoches.
Folha - A que significa a queda da
popularidade de Lula?
Ianni - Lula é um desastre. A frustração que está produzindo na
opinião pública é séria e profunda. Há pouco tempo o [ministro]
José Dirceu disse que o que vão fazer com a universidade pública
será mais sensacional do que fizeram na Previdência! Ao que tudo
indica, vão acatar as diretrizes
educacionais do Banco Mundial...
Folha - Como fica a esquerda neste momento de descrédito?
Ianni - A esquerda está demorando para entender a globalização.
Eles são patriotas, mas são de um
patriotismo que se confunde com
um nacionalismo anacrônico. A
esquerda precisa ser internacionalista. Eles não lêem "The Economist", não sabem o que está
acontecendo por trás das decisões
do mercado. A esquerda deve caminhar para uma inteligência lúcida do que é o processo e procurar estabelecer alianças com as
classes subalternas, buscando
construir um globalismo de baixo
para cima. Mas eles preferem usar
o palanque do Fórum Social para
proferir discursos comprometidos com um nacionalismo anacrônico e ultrapassado.
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