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CONFLITO AGRÁRIO
Por meio de parecer da autarquia, governo Lula flexibiliza medida de FHC que coíbe ação de sem-terra
Incra ensina a driblar lei contra invasão
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
No discurso, o governo Lula
manteve em vigor a medida provisória que proíbe, por dois anos,
a vistoria de propriedades rurais
invadidas. Na prática, um memorando do Incra ensina aos superintendentes da autarquia modos
de contornar a lei.
A Folha obteve uma cópia do
documento. Foi escrito faz 20
dias. Redigiu-o o advogado Carlos Frederico Marés de Souza Filho, 55. É procurador-geral do Incra. Cabe a ele fixar o padrão legal
adotado no âmbito da autarquia.
Desde a posse de Lula, em janeiro, o Incra faz vista grossa à aplicação da medida antiinvasão. Não
há notícia de imóvel invadido cuja
vistoria tenha sido brecada. A manifestação de Souza Filho deu à
má vontade a concretude de um
texto oficial.
O procurador-geral fez uma leitura inédita da lei. Diz, em seu parecer, que a medida provisória
que a instituiu trouxe "uma proteção especial ao direito de propriedade". Mas não cabe ao Incra
invocar essa proteção. "Somente
pode ser usada ou exercida pelo
proprietário" da terra invadida.
De resto, Souza Filho detalha
em seu parecer os casos em que a
manifestação do fazendeiro pode
ser ignorada. Para o procurador-geral, a ação do Incra deve partir
da seguinte baliza: o "impedimento" contido na medida provisória, ou seja, o obstáculo à inspeção de terras invadidas, "não pode ser entendido como uma punição aos movimentos sociais, porque isso significaria impedir a solução de conflitos [...]."
Interpretação draconiana
Baixada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em
maio de 2000, a lei antiinvasão teve o objetivo explícito de coibir a
ação do MST.
Sob FHC, a legislação mereceu
uma leitura draconiana (relativo a
Drácon, legislador grego, famoso
pela crueza e severidade das leis a
ele atribuídas).
A vedação à vistoria de terras
ocupadas à força era levada ao pé
da letra pelo tucanato. Invadida, a
propriedade tinha o nome levado
à internet. Independentemente
da manifestação do proprietário,
a terra, ainda que improdutiva,
era excluída do rol de desapropriações.
O MST acusou o golpe. A revogação da medida passou a compor todas as listas de reivindicações do movimento. Temendo a
reação do patronato rural, o Palácio do Planalto resistiu às investidas. O parecer jurídico do Incra
acomoda a resistência no campo
da retórica.
Datada de 23 de junho, a manifestação de Souza Filho foi motivada por um ofício vindo de Santa
Catarina. A superintendência catarinense do Incra formulou cinco perguntas sobre a "aplicabilidade" da medida antiinvasão.
Em todas as respostas, o procurador-geral Souza Filho ofereceu
argumentos favoráveis à vistoria
de terras invadidas. O texto foi repassado às superintendências regionais, para "padronizar todas as
medidas adotadas".
Fixadas as premissas -cabe ao
proprietário chiar contra a invasão, e a lei de FHC não deve punir
os movimentos sociais-, o parecer de Souza Filho passa a responder às questões vindas de Santa
Catarina. Perguntou-se a ele, por
exemplo: "Como se deve aplicar a
medida provisória nos casos em
que a invasão ou esbulho se deu
em parte do imóvel?"
E o procurador-geral responde:
"Se o esbulho ou invasão se der
em espaço pequeno do imóvel,
que não comprometa a avaliação
do cumprimento da função social
e da produtividade do conjunto
do imóvel, não há impedimento
da vistoria, avaliação e desapropriação".
Na opinião de Souza Filho, ainda que a invasão afete uma "área
maior" da propriedade, o Incra
poderá avaliar e desapropriar a
"parte do imóvel não comprometida". Desde que esse naco de terra continue sendo considerado
"grande propriedade".
Detalhista, Souza Filho anotou:
"Quando um imóvel rural é composto por diversas matrículas, cada um deles pode ser vistoriado,
avaliado e desapropriado de per
si. Isso significa que, se um deles
está esbulhado ou invadido, nada
impede a vistoria, avaliação e desapropriação dos outros".
Outra pergunta: "É possível a
vistoria de imóvel rural invadido
ou esbulhado com a anuência expressa do proprietário?" A resposta: "Sim. Se o proprietário tem
a possibilidade de vender o seu
imóvel, terá também disponibilidade de anuir nos casos em que o
Incra deseje vistoriar para fins de
desapropriação".
Indenização
Estudo realizado pelo governo
Fernando Henrique Cardoso induz à percepção de que abundam
no campo brasileiro fazendeiros
abertos a composições com o Incra. Colecionaram-se dados segundo os quais apenas um terço
dos donos de terras invadidas reivindicava na Justiça a reintegração de posse. A passividade dos
outros 70% tonificou a suspeita
de que muitos houvessem até estimulado a ocupação das próprias
terras. Só para obter indenização
do governo.
Mais uma pergunta formulada à
Procuradoria do Incra: "É possível [...] a desapropriação do imóvel rural em que já houve vistoria
e foi invadido ou esbulhado depois dela?". Souza Filho: "Sim. [...]
Se já houve a vistoria e a apuração
do descumprimento dos critérios
legais de produtividade e função
social, são inócuos a invasão e o
esbulho coletivos".
O procurador-geral aconselha a
inspeção e a desapropriação de
imóveis rurais em outros dois casos. Quando a terra invadida é adquirida pelo governo em operação convencional de compra e
venda e quando o imóvel está
ocupado por mais de cinco anos.
Neste último caso, Souza Filho
sustenta que "o Incra tem dois caminhos para a regularização da
gleba: a desapropriação com discussão do pagamento para o verdadeiro proprietário, os posseiros, ou o reconhecimento da posse para fins de ação de usucapião,
sem ônus para o poder público federal".
A lei antiinvasão vem sendo flexibilizada pelo governo também
no que diz respeito à punição de
trabalhadores rurais que participam de invasões. Deveriam ser
excluídos dos programas oficiais.
Em fevereiro, porém, o governo
retirou da internet os nomes de 25
sem-terra punidos em 2002, ainda
sob Fernando Henrique.
Em maio, o secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, disse: "Não cabe a nós [do governo] excluir trabalhadores. A
nossa função é fazer a reforma
agrária".
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