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ARTIGOS/PT NO DIVÃ
Tudo que é sólido se desmancha em... cargos
FRANCISCO DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"A burguesia não pode existir sem
revolucionar constantemente os instrumentos de produção e, portanto,
as relações de produção, isto é, todo o
conjunto das relações sociais. Esta
mudança contínua da produção, esta transformação ininterrupta de todo o sistema social, esta agitação, esta perpétua insegurança distinguem
a época burguesa das precedentes.
Todas as relações sociais tradicionais
e estabelecidas, com seu cortejo de
noções e idéias antigas e veneráveis,
dissolvem-se; e todas as que as substituem envelhecem antes mesmo de
poder ossificar-se ."
Marx e Engels, "Manifesto Comunista", 1848 (destaque do autor).
Este artigo consuma meu afastamento do Partido dos Trabalhadores, do qual me desligo formalmente. Aqui não me dirijo a qualquer instância formal do partido,
nem aos seus dirigentes no próprio partido e no governo, mas
aos petistas e aos cidadãos em geral. Aos primeiros por ter compartilhado com eles a militância
durante todos os anos de existência do partido, e aos segundos por
serem os únicos detentores formais, pela Constituição, do poder
republicano e democrático, aos
quais o Partido dos Trabalhadores e seu governo devem obediência.
Ambos confiaram no Partido
dos Trabalhadores, seja na condição de militantes e eleitores, seja
na condição de cidadãos que permitiram, pela sua reiterada aposta
na democracia, a existência do
Partido dos Trabalhadores e sua
chegada ao Poder Executivo e à
maioria na Casa legislativa que representa o povo.
Tenho o direito de cobrar do
Partido dos Trabalhadores pelo
governo que ele realiza, pela minha condição de militante e de cidadão. E, daqui por diante, exclusivamente pela minha condição
de cidadão. Pois muito além do
que imagina e pensa a direção
partidária, o PT tem que dar satisfações à cidadania, que lhe deu as
condições para disputar democraticamente e chegar ao governo.
Falta a essa liderança consciência
democrática e republicana, enquanto lhe sobram arrogância,
prepotência e maneirismos caboclos de péssima fatura.
Não me movem nem arrogância protagônica -este belo termo
mais castelhano que português-
nem propósitos catilinários nem
profecias catastróficas nem o desejo de que outros me sigam neste
caminho. Cada um dos petistas e
cidadãos é independente e único
sujeito de suas próprias ações, decisões e opções. Apenas não confio mais nos dirigentes do partido
-os que estão no governo e os
que permanecem nas instâncias
partidárias. Sequer suponho que
esse todo seja homogêneo.
Muitos dos que estão no governo e permanecem e permanecerão no partido têm o direito de assim procederem e não os transformo em meus inimigos, sequer
em adversários. Tenho a certeza
de que continuarei a manter fraternais amizades com muitos deles e continuarei a considerá-los
membros importantes da esquerda brasileira e lutadores pelas
transformações na sociedade brasileira em seu caminho por maior
justiça, igualdade social e socialismo.
Afasto-me porque não votei nas
últimas eleições presidencial e
proporcional no Partido dos Trabalhadores, reiterando um voto
que se confirma desde 1982, para
vê-lo governando com um programa que não foi apresentado
aos eleitores. Nem o presidente
nem muitos dos que estão nos ministérios nem outros que se elegeram para a Câmara dos Deputados e para o Senado da República
pediram meu voto para conduzir
uma política econômica desastrosa, uma reforma da Previdência
anti-trabalhador e pró-sistema financeiro, uma reforma tributária
mofina e oligarquizada, uma
campanha de descrédito e desmoralização do funcionalismo
público, uma inversão de valores
republicanos em benefício do
ideal liberal do êxito a qualquer
preço -o "triunfo da razão cínica", no dizer de César Benjamin-, uma política de alianças
descaracterizadora, uma "caça às
bruxas" anacrônica e ressuscitadora das piores práticas stalinistas, um conjunto de políticas que
fingem ser sociais quando são
apenas funcionalização da pobreza -enfim, para não me alongar
mais, um governo que é o terceiro
mandato de FHC.
Mesmo a "jóia da coroa" do governo, sua política externa, tem
não poucos aspectos de retrocesso: a crença no livre comércio, em
áreas de mercados livres, na contramão da rica experiência latino-americana, teorizada brilhantemente por Raúl Prebisch e Celso
Furtado. Nem o meu voto nem os
dos milhões que confiavam em
mudanças substanciais no rumo
do país e depositaram essa confiança no presidente eleito e nos
que o acompanham, no governo e
no partido, foi dado para isso.
Minhas críticas ao governo já
são antigas, até antes da posse.
Nelas, todas públicas, em artigos e
entrevistas, manifestei, sem rebuços, não apenas minha discordância, mas minha convicção de que,
por esse caminho, não chegaremos a bom termo neste primeiro
governo federal do PT. Não estou
só nesta posição.
Mas minha discordância não se
funda apenas -e esse apenas já
seria muito- no que poderia ser
considerado um desvio conjuntural, uma operação política tática
para governar e atenuar os efeitos
da herança de FHC. Ela vai mais
longe: há transformações estruturais na posição de classe de um
vasto setor que domina o PT, que
indicam uma real mudança do caráter do partido. E, como posições
de classe não se mudam com simples mudanças de nomes ou de
conjuntura ou de melhoria de alguns indicadores econômicos,
considero que o governo Lula está
aprofundando a chamada "herança maldita" de FHC e tornando-a irreversível. Não votei para
esse aprofundamento, mas contra
ele.
Essa posição crítica tem sido
contínua e não se confunde com
personalismos, com acusações.
Mesmo quando errei ao adjetivar
a atuação do ministro-chefe da
Casa Civil, o que reconheci através de carta que foi publicada, minha intenção foi chamar a atenção para a repetição de práticas
que apenas fizeram do Brasil um
dos países mais desigualitários do
mundo capitalista, apesar de ter
sido o segundo em taxa de crescimento no século que foi de fins do
19 até os anos 70 do século passado.
O reconhecimento de meu próprio erro não foi acompanhado
de gesto igual, pois sequer a correspondência do próprio ministro através de seu advogado chegou ao conhecimento público, informando que ele próprio havia
sugerido a renúncia à ação judicial que anunciara, substituindo-a
por uma troca de correspondência que considerasse as duas partes satisfeitas. Isto é parte da sutil
prática de desqualificação aos que
fazem oposição, a permanência
do "homem cordial" que não suporta a distância, que toma a assunção de uma responsabilidade
cidadã como retratação e covardia. Ao invés de ver nela a recusa
do princípio schmittiano da política como relação amigo-inimigo,
que pode contribuir para liquidar
de vez o que ainda há -e como!- de autoritário na política
brasileira.
Poderia alegar minha condição
de fundador do partido, muito
antes que muitos que hoje desfrutam do poder a ele tivessem chegado. Mas não me interessa glorificar nem heroicizar minha posição: abomino as instituições de
herança aparentadas ao capitalismo e declino das homenagens.
Partido é uma associação de cidadãos livres para um projeto coletivo de poder, na definição clássica, baseada em alguma experiência comum, de qualquer natureza, mas sobretudo de classe.
Não é uma questão afetiva, embora ao longo dos anos muitos laços
afetivos importantes tenham se
construído. Quando a liga que faz
o partido, o projeto coletivo de
poder para transformação da sociedade no sentido do socialismo,
e de mobilização da sociedade para tanto, se esgota, então é hora de
deixá-lo. As amizades, se forem
sólidas e para além do partido,
continuarão.
Tampouco me movem ressentimentos, como áulicos novos e antigos intrigam na corte de Brasília.
Qualquer dos intrigantes, na corte
ou alhures, está desafiado a relatar
qualquer conversa que eu tenha
tido a respeito de cargos ou funções no governo. Salvo Paulo
Vannuchi, e ele -tendo sido portador de uma mensagem do já
eleito, mas ainda não empossado
presidente, em que este dizia que
os cargos de primeiro escalão teriam que ser negociados, mas para qualquer cargo do segundo escalão, nas áreas de minha competência e preferência, bastava eu
escolher- sabe de minha pronta
recusa.
Abriu no meu escritório, em
conversa reservada que ele pediu,
um imenso organograma do Estado brasileiro, para localizar cargos ou funções de minha escolha.
Pedi-lhe que fechasse o organograma e dissesse ao presidente
que eu nunca iria para qualquer
cargo governamental, mesmo o
mais importante, pois a missão
do intelectual é exercer a crítica.
Foi a mesma conversa que havia
tido com ele dois anos antes na casa do professor Antonio Candido,
quando Marta Suplicy se elegeu
prefeita de São Paulo, e o hoje presidente mandou dizer igualmente
que queria que eu escolhesse o
cargo. E ele teve a mesma resposta
que lhe dei dois anos depois. Que
foi a mesma resposta que dei à
companheira -sim, companheira- deputada Luiza Erundina,
quando se elegeu prefeita de São
Paulo e convidou-me pessoalmente, por telefone, ela mesma
no aparelho, para ser seu secretário de Planejamento. Declinei e
indiquei o professor Paul Singer.
Que terminou sendo o excelente
secretário de Planejamento de
Luiza Erundina; sem jactância,
certamente ajudei Luiza a fazer a
escolha, com que São Paulo ganhou um de seus melhores secretários dos últimos tempos.
Muitos acharão precipitada a
decisão, na convicção de que o
governo Lula ainda está em disputa. Não é o meu caso: o governo
Lula nunca terá a hegemonia,
apenas a formação de maiorias
"ad hoc", sem nenhuma solidez.
O PT trocou a hegemonia que se
formava por um amplo movimento desde a ditadura, no qual o
próprio partido tinha lugar e função central, a direção moral que
reclamava transparência, separação das esferas pública e privada,
fazia a crítica do neoliberalismo,
organizava os trabalhadores, incluía os excluídos, indicava o caminho do socialismo, pelo prato
de lentilhas da dominação.
O PT no governo é um prolongamento da longa "via passiva"
brasileira, a expansão do capitalismo da exclusão, a repetição do
mesmo, desde o aliancismo desembestado até as políticas dos tíquetes do leite. O PT é hoje o partido de centro no espectro político
brasileiro, junto com aquele que
escolheu como irmão, o PSDB: se
odeiam, mas são irmãos. E o pior
é que não sabe disso. Pensa que
está reformando o país.
Embora transformações estruturais que o próprio PT sempre
subestimou ajudem a explicar
boa parte do seu aburguesamento, ou do seu envelhecimento precoce, nas palavras de Marx e Engels, dois "renegados" pelo PT do
poder, a responsabilidade das lideranças é inescapável. E a do
presidente assume um lugar central: ele é a liderança carismática
responsável, posto que ela projeta
uma sombra de proteção e encantamento sobre os processos reais.
Quando a própria liderança carismática não tem consciência
desse papel que lhe é imanente,
então a política como atividade
dos cidadãos corre um sério risco,
pois o mito anula a política. Aos
cidadãos cabe recuperar o sentido
da política e o primeiro e essencial
passo é desmitificar o mito.
Francisco de Oliveira, 69, é professor
titular (aposentado) de sociologia do Departamento de Sociologia da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas), da USP, e coordenador-executivo do Centro de Estudos dos Direitos
da Cidadania-Cenedic-USP
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