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Carta a José Genoino
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Meu caro Genoino,
A afirmação que você defende em seu artigo "Liberdade de
opinião e disciplina partidária",
publicado em 12/12/03 na Folha, é
da mais alta relevância: "Se a vida
dos partidos deve ser orientada
por um bom e democrático estatuto normativo, então um partido, principalmente quando adota
decisões legítimas em suas instâncias dirigentes, não pode se submeter ao arbítrio da vontade individual de poucos. Isso significaria
derrogar o próprio conceito de
partido político". Se a própria definição de partido diz que se trata
de uma associação de cidadãos
que se ligam em vista dos interesses da pólis, está desde logo rejeitada a tese de que venha a ser o lugar do arbítrio. Dada a definição,
segue-se a inferência: os radicais
do PT têm participado ativamente das discussões sobre as reformas constitucionais; tendo sido
derrotados em eleições democraticamente conduzidas e, não
cumprindo a vontade coletiva,
devem ser simplesmente excluídos da associação.
Raciocínio perfeito se não fosse
apenas formal. Um partido é uma
associação em vista de um projeto
político, cabendo-lhe exprimir
determinados interesses dos cidadãos e modificar aspectos importantes de suas formas de vida, de
modo tanto mais profundo quanto vem a ser mais radical. Ora, o
PT, reconhecendo os novos desafios do capitalismo contemporâneo e as novas (e antigas) necessidades da sociedade brasileira,
mudou substancialmente seu
projeto. Convém até mesmo dizer
que está reformando sua constituição e refazendo tacitamente o
contrato originário que lhe deu
origem. Não assiste apenas a um
choque de opiniões e de estratégias sobre as novas posições, mas
coloca em discussão o porquê de
as pessoas se associarem. Desse
modo, manter-se fiel às teses antigas não significa romper com a
maioria, mas simplesmente continuar associando-se a ela segundo o contrato original.
Nos partidos, as minorias se
submetem à maioria desde que
não tenham sido postos em dúvida certos pontos comuns a todos
os militantes. Convenhamos:
ideologicamente o PT é hoje um
espelho partido, incapaz de conciliar diversos modos de agir politicamente. Mas, como partido, a
despeito de abrigar diferenças radicais, não pode abandonar seu
projeto de transformar a sociedade e, por conseguinte, de se transformar a si mesmo. Nesse processo, o critério para julgar a indisciplina partidária torna-se vago,
pois não se sabe precisamente
quem está cometendo a infração,
o grupo dominante ou os dissidentes. Em toda constituição democrática existem cláusulas pétreas que levam o Poder Judiciário a anular leis que foram votadas democraticamente pelo Congresso Nacional. Quando um partido refaz seu projeto original, é
ele mesmo que passa a desenhar
os limites, aglutinando seus próprios associados. Nessas condições, será democrático impor a
todos decisões tomadas pela
maioria quando cada associado
está refazendo seu próprio perfil?
Impondo-lhes a pena máxima
em vez de outras punições, a direção do partido está dizendo a eles
e à sociedade que os chamados infratores deixam de ser companheiros, que perderam o elo básico que os unia anteriormente. Esse corte não é questão de democracia, mas de convencimento.
Numa associação política, a disciplina também é questão política a
ser exercida conforme valores e
circunstâncias. Cabe aos rebeldes
julgar até que ponto podem continuar marginais, sofrendo as punições cabíveis, e avaliar o momento de ajustar-se ao novo projeto
ou abandonar o PT em nome da
fidelidade às suas convicções e aos
seus eleitores. Nessas condições, a
mera expulsão corre o risco de tolher a diversidade, impor um padrão vindo de cima e vir a ser mais
um sintoma de burocratização
institucional.
Como você sabe, não tenho
simpatia por esse grupo dito radical e não os defendo porque assume posições tradicionais que
eram do partido antes do segundo turno das eleições presidenciais; um partido que não muda se
esclerosa. A questão é outra e diz
respeito às regras da democracia
interna de uma associação política. No caso de mudança constitucional, temos outro exemplo de
situação em que certos juízos devem ser suspensos. Também não
sou petista nem estou ligado formalmente a qualquer partido, interessa-me o desenvolvimento do
sistema político brasileiro como
um todo, e me aproximo deste ou
daquele partido da esquerda ou
do centro que me parece trazer no
momento a luz da renovação e
justiça social. A vitória do PT nas
últimas eleições foi fruto de uma
enorme aspiração por mudanças.
Até agora, não me parece que o
governo Lula tenha correspondido a essa esperança.
Haverá também o PT de afogar
o novo em nome de um princípio
formal? Ou pretenderá ele, depois
de ter chegado ao poder, não ser
mais do que o braço partidário
desse poder?
José Arthur Giannotti, 73, é professor
emérito da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)
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