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ENTREVISTA
Para cientista político, ruptura com bases do PT pode empurrar presidente a aliança com setores não-organizados
Lula tende ao bonapartismo, diz Leôncio
FERNANDO RODRIGUES
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O cientista político Leôncio
Martins Rodrigues, 69, acha que o
presidente da República, Luiz
Inácio Lula da Silva, poderá "tentar se fortalecer entre os segmentos não-organizados, entre os pobres e também entre as camadas
empresariais e classes médias".
Será uma forma de Lula compensar o desgaste que as reformas
constitucionais causarão na sua
imagem, sobretudo as mudanças
na Previdência pública.
Essa busca de apoio em categorias menos propensas a ficarem
com o PT, segundo Leôncio, "não
é impossível nem contraditória"
com a história de Lula.
"Na América Latina aconteceu
muitas vezes. O nosso Getúlio
[Vargas] é um exemplo. Nesse caso, a tendência para o bonapartismo será grande", observa Leôncio, que é professor titular de ciência política da Unicamp.
Estudioso da política partidária
e do sindicalismo, comunista de
orientação trotskista na juventude, Leôncio foi um eleitor confesso de Fernando Henrique Cardoso. Acha que as críticas de intelectuais a Lula vêm de quem "não
tem experiência de atuação política concreta num contexto de
competição democrática".
Esses críticos, sustenta o professor, "têm pouca importância: alinharam-se o tempo todo contra
FHC que conseguiu vencer duas
eleições presidenciais no primeiro turno".
No início deste ano, Leôncio foi
um dos primeiros a apontar o
"descompasso" entre a "capacidade teatral" e a "capacidade de
execução" de Lula. Hoje, ainda
crítico, enxerga mais habilidades
na administração petista.
""O governo está optando (sem
trocadilhos) por ganhar o apoio
da massa de eleitores, mesmo às
custas do rompimento com os setores sociais organizados", diz.
Leia a seguir trechos da entrevista:
Folha - Por que Lula e o PT nunca
fizeram uma autocrítica completa
a respeito de suas convicções? Teria impedido a sua eleição?
Leôncio Martins Rodrigues -Porque nunca houve necessidade de
uma autocrítica. O partido só tivera experiência de administrações municipais e estaduais. Certas questões de princípio não
eram muito importantes. Por outro lado, não havia muito lugar
para os temas que se referissem
aos rumos da economia e da sociedade brasileira.
Além disso, embora sempre um
ethos socializante (estatizante,
corporativo, populista, nacionalista, antiamericano, terceiro-mundista, intervencionista, antidemocracia liberal) tivesse permanecido como o fundamento
ideológico legítimo do partido,
havia muita confusão quanto à
teoria. O PT nunca foi monolítico
ideologicamente. Nem poderia
em razão da profusão de tendências existentes no seu interior.
Nas conjunturas eleitorais, notadamente nas disputas majoritárias, as posições mais radicais, de
tipo socialista, eram colocadas em
surdina, mas isso não provocava
grandes protestos da militância.
Mas lembremos que em cada disputa presidencial o PT caminhava
um pouco mais para a direita. Na
última, Lula e o núcleo do partido
se deram conta de que o radicalismo juvenil os levaria a ficarem encerrados no gueto da esquerda caso não acontecesse uma improvável radicalização do eleitorado.
Folha - É correto dizer que o PT está traindo antigas convicções?
Leôncio - Traição é uma palavra
muito pesada. Lula, quando no
apogeu de sua liderança sindical,
declarava que era a favor de um
Estado mínimo. Depois, deixou
de falar sobre isso. Significa que
posteriormente "traiu" suas convicções ou que, agora, está voltando a elas?
Mas o PT não é o Lula. E é certo
que o partido, desde sua formação, falava em governos de trabalhadores. Mas a cada campanha
punha essa e outras palavras de
ordem de lado. Naquele momento, nenhuma liderança importante do partido falou em traição.
Agora, tudo ficou mais complicado, porque a responsabilidade
de ser governo exige medidas impopulares que ferem os interesses
das bases tradicionais do partido
e alianças com antigos adversários. Mas as críticas dos radicais
não podem ficar num terreno
abstrato. Cumpre ver as alternativas que os opositores, dentro e fora do PT, têm para as propostas
do governo e se a economia brasileira andaria melhor se se pusesse
de lado, definitivamente, a idéia
de reformas, a começar pela previdenciária. É claro que os que estão contra a reforma da Previdência alegam que estão contra alguns pontos, mas, na verdade,
não querem reforma alguma porque, de um jeito ou de outro, afetam seus interesses corporativos.
Folha - Que poder o funcionalismo exerceu na formação do PT?
Leôncio - Na formação do PT e
depois da CUT, os sindicatos de
funcionários não foram importantes. O sindicalismo do setor
público, na época, praticamente
não existia. Foi a Constituição de
1988 que, entre nós, permitiu um
grande avanço do sindicalismo de
funcionários. Não foi um fenômeno brasileiro. Os sindicatos de
funcionários, em todos os países
do mundo ocidental, começaram
a crescer a partir da década de 70
enquanto o sindicalismo do setor
privado declinava.
Folha - Em que medida a CUT vai
permitir o atrelamento da entidade ao governo? É certo pensar em
algum tipo de CUT domesticada?
Leôncio - A CUT já vem mudando de comportamento há certo
tempo no sentido de que já vinha
passando de um sindicalismo de
confronto para um sindicalismo
de negociação.
A subordinação da CUT ao governo, por um lado, ou um rompimento, por outro, me parece difícil de acontecer. De todo jeito, é
estranho que o presidente da República tenha indicado, quase que
formalmente, o presidente da
CUT. Mesmo considerando que
se trata de um ex-dirigente sindical que chegou à Presidência, a indicação parece um pouco uma
nomeação. No caso, não foi um
apoio político de um ex-sindicalista na Presidência a outro companheiro operário, mas uma indicação que teve um caráter quase
administrativo. Só que o PT não é
o dono da CUT, nem é o único
partido com influência na entidade. O que parece mais provável é a
CUT se manter próxima, mas não
atrelada ao governo.
Folha - O fato de a CUT ter de novo um presidente, Luiz Marinho, do
meio metalúrgico, tem algum efeito prático para a central?
Leôncio - O principal efeito é enfraquecer o poder de fogo do sindicalismo do setor público e fortalecer uma liderança menos radical e acostumada a barganhar
com o patronato.
Não sofrem de um radicalismo
infantil e nem vêem os empresários como um inimigo de classe a
ser destruído. Já o sindicalismo
do funcionalismo público tem um
lado muito conservador, no sentido de que está voltado para o congelamento de vantagens que, nos
tempos atuais, aparecem como
privilégios. O funcionalismo é
mais agressivo, até porque têm
muito mais facilidade para fazer
greve. Desse modo, acho que, sob
a liderança de Luiz Marinho, a
CUT deverá se mostrar mais dinâmica e capaz de renovação.
Folha - Quando o PSDB chegou ao
poder tentou aniquilar outros partidos e se tornar a maior sigla. Deu-se mal. O PT faz um caminho semelhante, mas usando "partidos-laranja" para exercer a hegemonia
no Congresso. Vai dar certo?
Leôncio - É cedo para dizer se vai
dar certo. A tática do PT é diferente da do PSDB. O PT procura se
preservar como partido organizado, disciplinado e coeso ideologicamente a fim de continuar não
só como a maior legenda no legislativo, mas como o partido-guia.
O programa de reformas, especialmente a da Previdência, ameaça seriamente esse projeto por aumentar a tensão interna no Congresso e pela dificuldade de manter a coesão das bancadas.
Acredito que, quando outros
projetos governamentais forem
apresentados, será difícil manter a
unidade petista. Nesse sentido, o
projeto de reforma do sistema
sindical muito provavelmente será outro foco de tensão.
Folha - A popularidade de Lula está ainda altíssima, num patamar
superior se comparado a outros
presidentes eleitos pelo voto direto depois de cinco meses de governo. Até quando dura esse fôlego?
Leôncio - Difícil dizer porque
Lula, na arte da sedução da massa
de eleitores, é um pós-graduado
que não necessita de nenhum
professor. É possível que a popularidade do governo venha a cair
mais rapidamente do que a do
presidente, tendência já indicada
por algumas pesquisas.
É possível também que o prestígio de Lula decline mais rapidamente entre os setores organizados dos trabalhadores e empregados do que entre o eleitorado pobre. Se tal acontecer, vejo pressões
fortes no sentido de se tentar algum tipo de separação da figura
do presidente da figura de alguns
ministros, políticos e partidos
aliados e de tentar uma comunicação direta com o eleitorado.
Folha - O sr. imaginava que iria
ver Lula ser comparado a Fernando
Collor por servidores com menos de
seis meses de mandato? A manifestação dos servidores em Brasília,
de certa forma, sela a ruptura do
governo petista com uma de suas
bases sociais mais características?
Esse caminho tem volta?
Leôncio - Poucos imaginariam o
Lula comparado com o Collor. É
claro que são personalidades
muito diferentes. A comparação
tem um objetivo intimidador para fazer o governo recuar.
Quanto à outra parte de sua pergunta: mais provavelmente, o
rompimento do governo com
suas bases no sindicalismo de
funcionários não tem retorno. Isso não significa acreditar que o
governo ficará no ar.
O presidente pode, como eu disse antes, tentar se fortalecer entre
os segmentos não-organizados,
entre os pobres e também entre as
camadas empresariais e setores
das classes médias. Isso não é impossível nem contraditório. Especialmente na América Latina
aconteceu muitas vezes. O nosso
Getúlio é um exemplo. Nesse caso, a tendência para o bonapartismo do presidente será grande.
Folha - Falou-se muito a respeito
de Fernando Henrique Cardoso,
que ele havia quebrado a espinha
dorsal do sindicalismo no início do
seu mandato, quando reagiu de
forma vigorosa à greve dos petroleiros. O que Lula está fazendo ou
ajudando a fazer com o sindicalismo? O que sobrou da CUT daqui em
diante?
Leôncio - As situações são diferentes. Na greve dos petroleiros, a
intenção do sindicato influenciado pelo PT era torpedear, logo de
início, o governo de FHC. Esse
não teve outra saída senão enfrentar os petroleiros, o que significa
dizer enfrentar a esquerda.
Lembremos que essa estava disposta, com vaias e pedras, a impedir o presidente de sair do Palácio.
Depois houve o "fora FHC" e a
idéia maluca de pedir o impeachment do presidente eleito no primeiro turno. Agora, não creio que
Lula tente quebrar o movimento
sindical e a esquerda. O que acontece é que Lula precisa realizar um
bom governo, o que não será conseguido se a cartilha dos radicais
for seguida.
Assim, o governo está optando
(sem trocadilhos) por ganhar o
apoio da massa de eleitores, mesmo às custas do rompimento com
os setores sociais organizados.
Folha - O que o sr. pensa dos discursos de Lula, do recurso às metáforas e de um certo tom palanqueiro, típico de campanhas eleitorais?
O contato direto com a população
lembra populismo? Por quê?
Leôncio - De fato, a semelhança
com o discurso e a prática populista é grande. Ela vem mais do jeito de ser do presidente. Mas o
contexto tem algumas diferenças.
No populismo latino-americano
falta um partido. No relacionamento com as massas desorganizadas, o contato é direto.
No caso atual, o PT é um partido
forte, com relações estreitas com
o sindicalismo e outros movimentos sociais. Mas o aspecto populista, como citei, pode se fortalecer no caso de o governo perder
sua base de apoio tradicional.
Folha - O sr. acompanha a desilusão de intelectuais simpáticos ao
PT nesse início de governo? Alguns
já romperam e decretaram o fim da
esperança. Outros permanecem
entre atônitos e esperançosos de
que alguma mudança mais brusca
virá. O que pensar deste quadro?
Leôncio - A maioria desses intelectuais não tem experiência de
atuação política concreta num
contexto de competição democrática. Politicamente têm pouca
importância: alinharam-se o tempo todo contra FHC, que conseguiu vencer duas eleições presidenciais no primeiro turno.
Podem fazer muitas reuniões
em algumas unidades da universidade e cutucar o governo. Mas,
no rol dos problemas e adversários que qualquer governo tem
que enfrentar, a intelectualidade
radical das academias é pouco perigosa, apesar da capacidade de
vocalização.
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