|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NO PLANALTO
Procura-se José Serra, o legítimo
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A história , como se sabe, é
um amontoado de inverdades sobre as quais os historiadores
ainda não conseguiram chegar a
um acordo. Descobre-se agora
mais uma mentira que se insinuava à posteridade como fato
consumado.
Dizia-se que, na origem do Plano Real, José Serra fizera corpo
mole. Aqui mesmo, neste retângulo, publicaram-se, no domingo
passado, detalhes de uma reunião
em que o pouco-caso de Serra tirara Mário Covas do sério.
Na segunda-feira, em entrevista
a "O Globo", Chico Caruso inquiriu Serra sobre o tema. E ele:
"Simplesmente não houve essa
reunião".
Serra não soube, mas o encontro
ocorreu. Nacos dos diálogos encontram-se assentados numa velha agenda de um dos participantes. É pena que Covas não tenha
vivido para compartilhar da revelação que, súbito, vem à tona.
A calva com olheiras que lhe envenenara o humor não era de Serra. Pertencia a um impostor. Imitou-o com esmero. Caprichou no
timbre de voz, nos trejeitos.
Ludibriou, veja você, até FHC.
Amigo íntimo, de tempos imemoriais. Deu-se em 1993, noite fria e
seca de setembro, Superquadra
Sul 103 de Brasília, apartamento
funcional de FHC, então ministro
da Fazenda de Itamar Franco.
A nata do PSDB fora convocada
em segredo. Além de Covas e do
pseudo-Serra, FHC chamou Tasso
Jereissati e Ciro Gomes. A equipe
econômica explicaria ao grão-tucanato a estratégia urdida nos
subterrâneos.
A inflação do mês de agosto batera em 31,79%, numa escalada
que ameaçava as pretensões presidenciais do PSDB. Os técnicos
haviam se preparado para uma
conversa longa. Lá estavam Edmar Bacha, Pérsio Arida, André
Lara Resende, Pedro Malan, Clóvis Carvalho e Winston Fritsh.
O relógio roçava as 22h. Esperava-se que o anfitrião provesse o
jantar. Mas FHC serviu um cardápio de fome aos dez estômagos
que atraiu para os sofás e cadeiras
de sua sala de estar: água, uísque,
amendoim e castanha de caju.
Auxiliado pelos colegas, Bacha
contou o que estava por vir: seria
criado um novo indexador. Ainda
não se chamava URV (u-erre-vê),
mas Unic (Unidade de Conta).
Depois, seria trocado por uma nova moeda, substituta do cruzeiro
real.
Havia um problema: o governo
precisava de US$ 20 bilhões para
tapar o déficit fiscal. Propunha-se
um "fundo de emergência", espécie de cheque em branco do Congresso, permitindo que FHC manejasse livremente algo entre 15%
e 20% do Orçamento da União.
Covas saltou da cadeira: "Estão
brincando. Querem tirar dinheiro
de governadores e prefeitos. Não
dão nada em troca, nenhum benefício imediato. O plano de vocês
não tem congelamento de preços.
E estão achando que isso vai passar no Congresso, em pleno período eleitoral. Nem em sonho".
Os economistas argumentaram
que, sem ajustar as contas públicas, seria impossível avançar. Perto de duas da madrugada, Covas
impacientou-se: "Vou embora. Se
é isso o que temos, acabou".
Bacha segurou-o pelo braço.
"Senta aí, Mário. Vamos conversar." Mais uma hora de lero-lero.
Covas quis saber quando, afinal,
a inflação recuaria. "Não antes de
maio de 94", chutou Bacha. Arida
e Lara Resende duvidavam da
profecia. Achavam-na demasiado
otimista.
Ciro e Tasso cobravam pressa. O
menecma de Serra guardava zeloso silêncio. Um silêncio que exasperava Covas: "Todo mundo fala
aqui, pô. Só o Serra fica quieto. Ele
é que deveria falar mais".
Esquivando-se das questões técnicas, o sósia limitou-se a dizer algo reproduzido assim nas páginas
da agenda que vem em socorro da
reconstituição: "Se conseguirmos
durar até maio de 94, será melhor
que façamos algo perto das eleições".
Um comentário de Covas emoldurou a reunião: "Não entendo
de assunto técnico. Sou político.
Neste nosso partido, os técnicos
têm o mesmo status dos políticos.
Se é isso o que vocês dizem que
precisa ser feito, vou junto. Para o
precipício".
O resto é conhecido. O real deu
dois mandatos a FHC. Ainda no
primeiro período, sob protestos do
sósia, o populismo cambial propiciou a ruína econômica. Hoje, em
meio aos escombros, um presidenciável governista é vendido ao público como candidato da mudança.
Suspeita-se que o Serra de 2002
seja o mesmo sósia de 1993. O Serra legítimo não deixaria o amigo
apanhando sozinho dos adversários. Já teria saído em defesa de
FHC. Pelo menos em público.
O Serra escocês, diria Nelson
Rodrigues, dificilmente ousaria
um passo de samba. E, conhecendo de números como conhece, não
encamparia a empulhação dos 8
milhões de empregos que saltaram das provetas de Nizan Guanaes.
Um grupo de tucanos cogitou,
na semana passada, a organização de um movimento para exigir
de Nizan a devolução do amigo.
Falhando o ultimato, invadiriam
o palacete de inverno que o publicitário mantém em Campos de
Jordão, de onde o verdadeiro Serra seria resgatado numa ação espetacular.
Na última hora, manuseando
números do Datafolha, o grupo
achou melhor manter o Serra autêntico sumido por mais algum
tempo. Por precaução, busca-se
um cativeiro menos óbvio, mais
distante de São Paulo.
Pensou-se num barco de pesca,
no litoral baiano. O mesmo em
que Duda Mendonça mantém,
acorrentado ao leme, um sujeito
de macacão amarfanhado, barba
à Enéas. Passa o dia gritando coisas como "Lulão guerra e ódio" e
"Viva o socialismo". Testemunhas juram ter visto José Dirceu
entrando na cabine do barco com
um pacote de cigarros debaixo do
braço.
Texto Anterior: Janio de Freitas: Mudança de direção Próximo Texto: Elio Gaspari Índice
|