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NO PLANALTO
A fantástica história do assassinado que se suicidou
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
17 de outubro de 2002.
Uma quinta-feira.
Noite densa. Ponteiros à altura das 23h30. O apelido do
local -"Passarela do Álcool"- emprestava à cena
litorânea uma atmosfera de
imprevisibilidade que contrastava com a promessa insinuada no nome da cidade
-Porto Seguro (BA).
Tudo ocorreu supostamente à volta de uma mesa de
bar. Nela se consumia bebida cuja designação -"capeta"- tampouco sugeria
bom agouro. Deu-se o indesejado: um estrepitoso rififi.
De concreto, de palpável
mesmo, sabe-se que foi produzido um cadáver. Desceu
à cova o garçom Nelson Simões dos Santos, 39. Foram à
prisão sete garotos, dois deles
menores.
Deu na TV, nos jornais,
nas revistas, em toda parte:
os jovens, todos de Brasília,
teriam matado Nelson por
conta de uma desavença banal. Como o "capeta" que os
embalava era produzido em
barraca defronte, pediu que
desocupassem a mesa. Desatendido, insistiu. Foi surrado
à morte.
Ouviram-se na delegacia,
já no dia seguinte, quatro
testemunhas. Narrativas
curtas. Mas contundentes.
Impregnadas de detalhes.
Tudo a apontar para a culpa
dos rapazes.
Decorridos três dias, as
mesmas testemunhas foram
reinquiridas. Não mais na
delegacia. Falaram a um
juiz, sob os olhares de promotores e advogados. Súbito,
refizeram declarações.
Algo de muito estranho se
passa sob o sol de Porto Seguro, eis o que se pretende demonstrar. A cena do assassinato, reconstituída pela polícia em cores vívidas, vai sendo, aos poucos, envolvida por
uma perigosa camada de névoa.
Um fenômeno para o qual
a imprensa, depois do estardalhaço inicial, não vem
dando, como de praxe, a devida atenção. Tome-se o
exemplo da testemunha Bonifácio Pereira Aguiar. É
garçom, colega do morto.
Presenciou a cena.
O que disse na delegacia?
Armado o sururu, "os rapazes fizeram uma roda, com
Nelson no meio." Aplicaram
"golpes com as cadeiras".
Desferiram "socos e pontapés". "Sem nenhuma pena."
Depois, Nelson ao chão, saíram "em desabalada carreira". Identificou Thiago Barroso Marnet como a pessoa
que "empurrou" Nelson e
"gerou" o tumulto.
E diante do juiz, o que disse
o mesmo Bonifácio? Não leu
o depoimento que prestou na
delegacia. "Não viu os rapazes colocarem Nelson no
meio de uma roda, desferindo socos, pontapés e cadeiradas". "Não viu Thiago empurrar o garçom Nelson".
Ouça-se agora a voz de outra testemunha, Balbino Inácio de Souza. Na delegacia:
presenciou a agressão. Um
dos rapazes "segurava o garçom pelo pescoço". Outro
"segurava as pernas". Os demais "aplicavam socos, pontapés e cadeiradas". Identificou Fernando Ferreira von
Sperling como o adolescente
"que segurava as pernas de
Nelson".
O mesmo Balbino na frente
do juiz: Assinou o depoimento dado à polícia "sem ler".
Viu a agressão, mas "não
consegue identificar nenhum
dos acusados". "Não pode
afirmar ter visto Fernando
envolvido na briga."
Mais uma testemunha:
Clemente de Souza Santos. À
polícia: "os rapazes fizeram
um círculo em volta do garçom". Agrediram-no com
"socos, pontapés e cadeiradas". "Uma das cadeiras
atingiu a cabeça do garçom".
Reconheceu, um por um, todos os agressores.
Ao juiz, Clemente disse:
não leu o depoimento dado
na delegacia. Reconhece todos os acusados, mas só viu
um deles, Fernando von
Sperling, "desferindo pontapés no tórax" do morto. Não
sabe se os demais "ingressaram na briga". Negou ter feito menção a um cerco em
torno da vítima. "Não viu
cadeira nenhuma atingir a
cabeça" do garçom.
De Reinalva Cruz de Oliveira, nova testemunha, para a polícia: viu "um rapaz
moreno, de cavanhaque, atirar uma cadeira de madeira
contra o garçom, atingindo-o na altura do tórax". Reconheceu Victor Tadeu Antunes Araújo como "o rapaz
que desferiu uma cadeirada
no garçom". Viu "umas dez
pessoas participando das
agressões".
De Reinalva para o juiz:
"Assinou sem ler" o primeiro
depoimento. Enxergou Victor "segurando uma cadeira,
cujos pés apontava na direção de alguém". Mas não o
viu "atingir nenhuma pessoa". Ia passando, quando se
deu conta do "tumulto".
"Mas não percebeu que se
tratava de uma briga".
Achou "que era alguém arrumando uma mesa". "Não
viu ninguém batendo em
ninguém."
Nesta segunda-feira, serão
retomados os depoimentos
do caso da morte de Nelson
Simões dos Santos. Há na fila
algo como 30 pessoas, 12 das
quais testemunhas oculares.
Convém prestar atenção à
inusitada brisa que vem da
Bahia.
Alguém precisa investigar
a investigação de Porto Seguro. Em homenagem à lógica.
A julgar pelo andamento do
inquérito, logo se concluirá
que o garçom socou o próprio tórax, chutou a si mesmo e, mamado de "capeta",
enfiou a cabeça num pé de
cadeira. Suicidou-se, o pobre.
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