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TENSÃO NO CAMPO
Admirador do MST, ministro admite que governo quer revogar medida de FHC que proíbe Incra de vistoriar, por 2 anos, área invadida
Rossetto quer alterar lei de invasões de terra
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O ministro Miguel Rossetto
(Desenvolvimento Agrário) admitiu, pela primeira vez, que o governo deseja revogar a medida
provisória de Fernando Henrique
Cardoso que proíbe o Incra (Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária) de vistoriar,
por dois anos, terras invadidas.
"Temos posição contrária a vários artigos da medida", disse o
ministro.
Em entrevista à Folha, declarou-se admirador do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra) -"Cumpre papel importantíssimo"-, considerou
aceitáveis invasões de terras ociosas -"Temos decisões judiciais
que não compreendem isso como
desrespeito"-, condenou as críticas à nomeação de apadrinhados dos movimentos sociais -"É
um preconceito inaceitável"- e
associou a violência no campo à
exclusão social- "Ela existe por
conta da miséria, do abandono,
da falta de perspectiva".
Rossetto,42, falou das "irregularidades" que herdou no ministério. Diz que FHC fez "uma reforma agrária do século 19". E promete a reforma "do século 21".
No novo modelo, que o ministro define como sendo "coletivo",
o dinheiro de Brasília não irá mais
para o assentado.
Será entregue a cooperativas e
associações rurais. O custo? "Não
tenho." Abaixo, a entrevista concedida à Folha.
Folha - A reforma agrária voltou
ao noticiário não pela ação de Brasília, mas por gestos do MST e pela
reação dos fazendeiros. Não é um
mal começo?
Miguel Rossetto - Não. Há uma
supervalorização do conflito no
campo nesse primeiro trimestre.
A média dos primeiros trimestres
dos anos de governo Fernando
Henrique foi de 79 conflitos. Nós
estamos com 24.
Folha - A diferença é que o MST vivia às turras com FHC. Esperava-se
que, sob o PT, houvesse conflito zero.
Rossetto - Há enorme redução
no padrão de conflito. Temos
mais de 70 organizações sociais
no campo. Não é correto atribuir
tudo ao MST.
Folha - Não há organização que
se equipare ao MST.
Rossetto - Realmente o MST é o
de maior representação. Mas há
movimentos como a Contag
[Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura".
É evidente que queremos separar a mobilização social da violência. Mas a tensão é provocada por
um brutal processo de exclusão,
de miséria e de abandono.
É natural que esses setores cobrem uma resposta do governo. E
há setores reacionários da sociedade, minoritários, que se nutrem
da violência.
Folha - O sr. entregou as superintendências estaduais do Incra, órgão mediador do conflito agrário, a
pessoas ligadas ao MST, à Contag,
à CPT [braço agrário da Igreja Católica", à CUT e ao PT.
Se fosse fazendeiro, não desconfiaria dos laudos de vistoria produzidos por esse novo Incra?
Rossetto - Laudos têm natureza
objetiva. Não há espaço para subjetividade. Havendo discordância, há a possibilidade de recurso
no Judiciário.
Não há militante orgânico do
MST ou dessas outras organizações na estrutura do governo.
Ainda que houvesse, não veria nenhum problema. A gestão é de
minha responsabilidade.
Folha - O sr. não há de negar a
vinculação dos novos superintendentes do Incra com as organizações citadas.
Rossetto - Vamos falar sobre isso. Da forma como o tema é apresentado, passa a idéia de que pessoas que têm relações com os movimentos sociais não podem ocupar cargos. Isso é um preconceito
inaceitável.
Temos produtores rurais e industriais que estão em ministérios. Isso é positivo.
Folha - O problema é que foram
nomeados para o Incra pessoas
identificadas com um lado do conflito agrário, despertando a desconfiança do outro lado, o dos produtores rurais.
Rossetto - O Incra não é um órgão neutro. Tem uma missão
constitucional: fazer a reforma
agrária.
Os gestores serão cobrados por
sua eficiência nesse trabalho.
Folha - Na área econômica, o governo traz a marca do conservadorismo. Antonio Palocci Filho [ministro da Fazenda" é comparado a Pedro Malan.
Na sua área, dá-se o inverso. O
contraste é proposital ou casual?
Rossetto - Não é proposital e não
entendo como poderia ser casual.
Recebi delegação do presidente
para executar um programa. É essa a minha responsabilidade e a
missão da minha equipe.
Folha - Discursando para prefeitos, o sr. disse que "o campo precisa deixar de ser espaço de conflito
e violência". Nos últimos dias, fazendeiros do Pará contrataram pistoleiros, documento da PM de Minas mencionou milícias armadas
no campo, produtores do Paraná
anunciaram um tal PCR [Primeiro
Comando Rural".
O sr. acha que a meia-volta à esquerda feita no seu ministério contribui para o desarmamento de espíritos?
Rossetto - Temos que deplorar
esse tipo de conduta. O ministério
não é polícia. O país dispõe de Judiciário, de Ministério Público.
As tensões devem ser resolvidas
com diálogo. Setores reacionários
de direita, minoritários, não conseguem conviver com a República. A maioria dos produtores não
concorda com esse tipo de conduta. Quem produz com responsabilidade social será respeitado e
apoiado. Não compactuaremos
com terras ociosas, voltadas à especulação.
Há áreas em que a grilagem é
uma realidade. Esse ambiente é
que estimula o padrão de barbárie
inaceitável. Nosso trabalho é superar isso.
Folha - Em nota, o sr. afirmou que
"a ação de depredação do prédio
do Incra em Mato Grosso" por militantes do MST "ultrapassou os limites democráticos de manifestação". A nota prega "respeito à
Constituição".
A invasão de terras privadas também desrespeita a Constituição ou
está dentro dos limites democráticos de manifestação?
Rossetto - O tema da ocupação
de áreas é vasto. Falamos em propriedades privadas, em áreas públicas. A responsabilidade de caracterizar a ilegalidade ou não é
do Judiciário.
Folha - Permita-me insistir. O sr.
está evitando se posicionar. A invasão de terras desrespeita a Constituição?
Rossetto - Não há possibilidade
de uma resposta em tese. As decisões dos tribunais variam em função do tipo de propriedade.
Folha - Suponha uma propriedade privada.
Rossetto - Temos decisões judiciais que não compreendem isso
como desrespeito se a propriedade não for produtiva.
A Constituição estabelece claramente a propriedade rural vinculada ao conceito de produtividade. A noção de propriedade está
vinculada à idéia da função social.
Por isso a resposta em tese é difícil. As manifestações sociais são
uma conquista democrática.
Folha - A violência está muito associada à invasão de terras.
Rossetto - Está associada também à exclusão social. Ela existe
por conta da miséria, da exclusão,
do abandono, da falta de perspectiva.
Folha - O primeiro ponto da pauta
de reivindicações do MST é a revogação da medida provisória de FHC
que proíbe, por dois anos, a vistoria de terras invadidas. Será revogada?
Rossetto - A revogação passa pela construção de maioria no Congresso ou por uma manifestação
do Judiciário.
Temos posição contrária a vários artigos da medida. Eu e o ministro José Dirceu [Casa Civil" temos posição unificada.
Folha - Os senhores são contra especificamente o artigo que proíbe
a vistoria de terras invadidas?
Rossetto - Seja isso, seja em relação a outros artigos. Estamos conversando com os movimentos. A
mudança vai depender dessas
condições.
Folha - O sr. trabalha nesse sentido?
Rossetto - Estamos conversando
sobre o tema de forma responsável. Acompanhamos o desenvolvimento das decisões dos tribunais superiores.
Folha - Como o sr. define o MST?
Rossetto - É uma organização de
trabalhadores vitimados pelo
processo de exclusão.
Cumpre papel importantíssimo
para o desenvolvimento da sociedade. Dispõe do meu respeito.
Respeito, que também devoto à
Contag, à CUT e outras organizações do campo. O que não significa concordância com todas as táticas. Sabemos diferenciar governo de movimentos sociais.
Tenho grandes amigos no MST
e me orgulho disso.
Folha - O sr. tem afirmado que "o
modelo agrícola centrado na pequena propriedade é o que melhor
responde à necessidade de criação
de postos de trabalho e renda". O
México está saindo desse modelo.
Na Europa, ele sobrevive à custa
de muito subsídio. No Brasil, os assentados não pagam dívidas. Apesar dos juros camaradas, a inadimplência roça os 40%. De onde vem a
sua crença na pequena propriedade?
Rossetto - Vem da experiência
secular do meu Estado. No Rio
Grande do Sul, experimentamos
o processo de acesso à terra no
início do século 19.
Não há dúvida de que a exigência de geração de emprego e renda
será respondida com mais eficiência por esse modelo, num
processo produtivo moderno,
contemporâneo.
Folha - A pequena propriedade
gaúcha tem peculiaridades que
não são comparáveis com a realidade média dos assentamentos.
Ali, a terra passa de avó, para pai,
de pai para filho. Há mecanização e
tradição de exploração agrícola. O
trabalhador do assentamento não
tem esse grau de qualificação.
Rossetto - Nos últimos 20 anos,
experimentamos políticas econômicas que desestruturaram todas
as atividades produtivas.
Há um padrão de exigência sobre os assentados que não se verifica em outras atividades.
O índice de mortalidade das micro e pequenas empresas urbanas
é muito superior aos índices de falência no campo. Houve uma resistência heróica da agricultura
familiar e dos assentados.
Folha - Resistência proporcionada pela constante rolagem de débitos em bancos oficiais.
Rossetto - Em valores muito inferiores às rolagens da agricultura
patronal.
Folha - Que avaliação o sr. faz da
reforma agrária de Fernando Henrique Cardoso e o que pretende fazer de diferente?
Rossetto - Fernando Henrique
fez uma reforma do século 19. Limitou-se a conceder terra. Fez assentamentos em que inexistem
condições básicas de produção.
Muitos não têm habitação, energia elétrica, estradas.
Temos que recuperá-los. Faremos a reforma do século 21, cujo
elemento central será a transformação do sem-terra num agricultor produtivo, que disponha de
conhecimento, de assistência técnica e crédito.
Vamos estimular um padrão
coletivo dos assentamentos.
Folha - O que é um padrão coletivo?
Rossetto - O estímulo a associações.
Folha - O dinheiro do governo
deixará de ser repassado ao trabalhador para ser entregue a cooperativas?
Rossetto - Exatamente. A parcela majoritária dos recursos passa a
ser gerenciada a partir dos interesses coletivos do assentamento.
Folha - A Polícia Federal abriu inquéritos para apurar supostos desvios de recursos públicos em cooperativas ligadas ao MST, entre
elas a Cocamp (SP) e a Coagri (PR).
O Estado está aparelhado para fiscalizar essas entidades?
Rossetto - Sim. O novo modelo
vai assegurar uma transparência
que inexiste hoje. Haverá controle
social por parte dos assentados.
Folha - O sr. está falando de um
modelo coletivista?
Rossetto - A estrutura de produção deve ser coletiva.
Folha - O sr. tem uma idéia dos
custos desse novo modelo?
Rossetto - Não tenho. A quantificação é difícil. Trabalharemos
com recursos da União, de Estados e municípios e com financiamentos internacionais.
Estou seguro de que temos condições de avançar vigorosamente
ainda neste ano.
Folha - O sr. trabalha com metas?
Rossetto - Prazos não tenho condições de estabelecer. O tempo será o menor possível.
Folha - O sr. não tem metas numéricas?
Rossetto - Não. Mas interessa ao
país que, num prazo mais rápido,
as famílias acampadas possam
produzir.
Folha - Além daquilo que o sr.
chamou de má qualidade dos assentamentos de FHC, há outros
problemas que o sr. julga ter herdado?
Rossetto -Sim. Vamos eliminar,
por exemplo, o Banco da Terra.
Infelizmente encontramos muitas
irregularidades: superfaturamento de terras, laranjas, pedágio no
acesso ao programa.
Serão enviadas ao Ministério
Público. [Ouvido, o ex-ministro
Raul Jungmann declarou: "Os
desvios foram levantados em sindicâncias que eu e o ministro José
Abrão abrimos. Minha expectativa é a de que o novo ministro
identifique e puna os responsáveis, como eu faria."".
Folha - Tema secular, a reforma
agrária sobrevive como uma página inconclusa da história brasileira. O sr. acha que em quatro anos
vai conseguir virar essa página?
Rossetto - Temos condições de
avançar e vamos avançar.
Folha - Avançar não significa resolver.
Rossetto - Evidentemente que
não. Mas vamos, em quatro anos,
introduzir, com vigor, um novo
modelo agrário no país.
Estou seguro disso.
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