São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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NO PLANALTO

Em conversa com Lula, Deus lava as mãos

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Deus não gostou de ter sido citado pelo presidente. Abespinhado, decidiu agir. Apareceu para Lula no Palácio da Alvorada. Foi um sonho confuso.
Por um instante, Lula pensou que estivesse diante do vulto satânico do deputado Babá. Quem mais usaria barba e cabelos tão exóticos?
Deus apresentou-se: "Sou eu, o Todo-Poderoso, Senhor dos homens de boa vontade".
E Lula: "Gostei do disfarce, companheiro Bush. O que é que você manda?".
"Não, não", disse Deus. "Venho do céu, não dos EUA. Sou o Altíssimo, o genuíno."
"Deixa de sacanagem. Vem me acordar de madrugada para se gabar da altura. Ora, francamente, companheiro Genoino."
"Não, não. Sou Deus, o verdadeiro, o Messias. Compreende?"
Natural que a ficha de Lula demorasse a cair. Deus nunca tinha aparecido para ele antes. Nem em sonho.
"Desço pouco à Terra", desculpou-se Deus. "É birra antiga. Ainda não engoli o que fizeram ao meu enviado. Mandei-o para salvar todo mundo e foi injust..."
Lula atalhou a frase de Deus: "Perdão, companheiro Messias, mas o Fernando Henrique teve o que mereceu. Ele deixou uma herança maldi..."
Foi a vez de Deus interromper o raciocínio do presidente: "Eu me refiro a Jesus Cristo."
Lula tentou contornar o constrangimento: "Rezei muito para chegar à Presidência. Três derrotas me fizeram pensar que você não existisse. Graças a Deus, digo a Você, eu estava errado. Demorou, mas minhas preces foram ouvidas."
"Bem", disse Deus, "não pense que foi fácil. Normalmente, não me meto em assuntos de política. Mas achei que, vitorioso, o Serra não controlaria o próprio ego. E concorrência é algo que Eu não admito."
Lula cofiou a barba. Fez cara de dúvida: "Não tô entendendo."
"Deixa pra lá", impacientou-se Deus. "Vou direto ao ponto. Não gostei de você ter dito que esperava que Eu ajudasse os desempregados do Brasil."
A cobrança divina deixou Lula sem palavras: "Mas, mas..."
"Quem prometeu milagres foi você. O desemprego é problema seu."
"Não me queira mal, companheiro Padre Eterno. Falei metaforicamente."
Deus explodiu: "Ao inferno com suas metáforas. Não jurou que criaria dez milhões de empregos? Pois peça socorro ao seu amigo mandingueiro, aquele da Bahia."
"O ACM?"
"Não, o outro."
"Duda Mendonça?"
"Esse mesmo. Como o Serra, ele também pensa que é Deus. Recorra a ele. Me exclua dessa. Tenho um nome a zelar. Aliás, demorei muitos anos para construir uma santa reputação."
Lula quis mudar o rumo da prosa: "Falando em boa reputação, me conta um segredo. Afinal, o Zé Dirceu sabia dos trambiques do Waldomiro Diniz?"
"Pensa que não tenho o que fazer? Sou onipresente, mas já não posso estar em toda parte. É dura a faina celeste."
"Outra coisa: quando é que o meu Corinthians vai sair do atoleiro?"
"Desemprego", verberou Deus, voz em riste. "Vim falar de desemprego."
Lula percebeu a inevitabilidade do tema. Entregou os pontos: "Ok, desemprego. O que quer eu faça?"
"Sei lá."
"Como assim?"
Deus fingiu que não ouviu.
Lula insistiu: "Se o Senhor, que tudo pode, não sabe, como é que eu, um pobre metalúrgico, vou saber?"
Deus emitiu os primeiros sinais de desconforto: "Você me pediu o milho. Não pediu para fazer o fubá. Resolver os problemas do Brasil é tarefa gigantesca. Envolve poder mais alto."
Lula, pulso acelerado, espantou-se: "Valei-me, Altíssimo. Poder mais alto que o Seu?"
Deus franziu o cenho. Sentiu um aperto na garganta. Sussurrou, descrente: "Você ainda não sabe do que o Sarney é capaz."
Lula acordou sobressaltado. Insone, visitou o Planalto. Em segredo. Alta madrugada. Passou em revista a galeria de fotos dos ex-presidentes. Deteve-se na imagem de Sarney. Revirou os olhos para cima, num esgar de transe místico.
Pela manhã, Lula chamou a direção do PMDB para uma conversa. Falaram de cargos. De segundo e de terceiro escalões. Começou, a seu modo, a tratar do problema do desemprego. Seja o que Deus quiser, pensou. Amém.


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