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LAVOURA ARCAICA
Grande procura por emprego cria os hotéis "peoneiros", onde
começa dívida do trabalhador com agenciador de mão-de-obra
Fluxo de imigrantes para regiões agrícolas nutre rede de escravos
DA ENVIADA ESPECIAL AO SUL DO PARÁ
O fluxo contínuo de trabalhadores rurais à procura de emprego nas áreas de expansão agrícola
alimenta uma rede de hotéis baratos -os hotéis "peoneiros"-,
onde os "gatos" encontram parte
da mão-de-obra que procuram.
Os trabalhadores chegam sem dinheiro. Como o "gato" antecipa o
dinheiro da conta do hotel, eles já
vão para a fazenda devendo.
Começa aí a relação de dependência entre o peão e o "gato".
Mesmo os que não são aliciados
em hotéis e vivem com as famílias
começam devendo, pois é de praxe o "gato" adiantar algum dinheiro para deixarem em casa.
O Ministério Público Federal
tem processado os "gatos" e os
donos dos hotéis como co-responsáveis pelo crime de trabalho
escravo. A Procuradoria Federal
dos Direitos do Cidadão ajuizou,
de março de 2003 a março deste
ano, 25 ações contra 116 pessoas:
50 são proprietários rurais, e os
outros, "gatos" e donos de hotéis.
Os relatórios de quatro anos de
fiscalização do Ministério do Trabalho analisados pela reportagem
mostram que o "escravo" contemporâneo se divide em três categorias: o peão-de-trecho (trabalhadores errantes, sem endereço
fixo nem vínculo com as famílias);
o homem do campo que migrou
para a periferia das cidades, mas
ainda sobrevive da atividade rural; e o que continua no campo,
em pequenas propriedades familiares, e faz trabalhos eventuais
para complementar a renda.
O peão de trecho é o mais vulnerável e o mais dependente do "gato". A secretária de Inspeção do
Ministério do Trabalho, Ruth Vilela, compara a relação entre eles à
síndrome de Estocolmo, que explica a gratidão de seqüestrados
para com os seqüestradores.
O Ministério do Trabalho retirou 41 trabalhadores de uma fazenda em São Félix do Araguaia
(MT), no ano passado, que haviam sido aliciados pelo "gato"
Edivaldo Brandão Araújo em
uma pensão em Espigão do Leste
(MT). Os peões dividiram o dinheiro das rescisões trabalhistas
com o "gato", que chorou emocionado diante dos fiscais.
Em três municípios do Sul do
Pará -Curionópolis, Xinguara e
Redenção-, a Folha encontrou
homens em hotéis "peoneiros"
esperando serem contratados, já
com dívidas acumuladas. Um dos
hotéis é arrendado pelo ex-peão
de trecho e ex-garimpeiro Raimundo de Souza, em Curionópolis. A diária do Hotel Brasil tem
diária de R$ 10, com refeições.
Adão Rosa de Souza, 45, de São
Borja (RS), não vê os quatro filhos
desde que se separou da mulher,
há três anos. "Meu endereço é o
hotel, o banco da rodoviária ou o
mato", resume ele, que estava no
Hotel do Riba, em Redenção.
Ele trabalha para José Mauro de
Souza, 44, mineiro de Itambacuri,
que desempenha uma outra função no esquema. Se apresenta como ""chefe de time", mas o Ministério do Trabalho o define como
""gatinho", porque também alicia
mão-de-obra. Souza é um desgarrado e, há 14 anos, não vê a filha,
que vive em Vitória (ES).
Ele exibe as mãos calejadas para
mostrar que trabalha ao lado dos
companheiros -seu grupo varia
de 20 a 40 homens-, mas, só ele
negocia as empreitadas.
Souza diz que ninguém tem carteira assinada no grupo e que só
possui, de próprio, uma bicicleta e
um celular pré-pago. Conhecedor
do drama dos trabalhadores rurais avulsos, por experiência, diz
que ""o futuro do peão de trecho é
nenhum" e que muitos, quando
morrem, não têm sequer um plástico que lhes sirva de mortalha.
A reportagem se deparou com
trabalhadores que fugiram de fazendas, a pé, porque o salário não
correspondia ao prometido.
Mariano Carvalho, 57, analfabeto, e os filhos Francisco Carvalho,
26, e José Luiz Carvalho, 20, fugiram há dois meses de uma fazenda em Eldorado do Carajás (PA) e
foram abrigados pela CPT de Marabá.
(ELVIRA LOBATO)
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