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APOCALÍPTICOS E INTEGRADOS
Fim de jogo
Eduardo Knapp - 1.jul.2004/Folha Imagem
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Paulo Arantes no Caoc (Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, da Faculdade de Medicina da USP); quando jovem, o filósofo flertou com a idéia de ser jogador |
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
O livro se chama "Zero à Esquerda" e integra uma coleção de
nome "Baderna" (editora Conrad). O primeiro de seus 17 textos é o ensaio "Apagão", de 1997,
no qual o autor decreta o embotamento do pensamento progressista brasileiro sob o impacto da
era FHC. O epílogo do livro, de
2003, intitula-se "Beijando a
Cruz" e pode ser lido como um
obituário do governo petista, pelo
menos enquanto promessa de
transformação social.
Provocação é o que não falta à
obra recente do filósofo Paulo
Arantes, 61. Seria simples se fosse
possível folclorizá-lo como mais
um "fracassomaníaco" de plantão
ou, pior, o mais ilustre representante do "babaísmo de cátedra".
O que vai no recheio deste livro,
porém, embalado pela irreverência calculada e emoldurado pelo
atestado de morte do tucano-petismo, é um conjunto de textos
tão difíceis quanto desconcertantes. Arantes renova a tradição
marxista brasileira lançando luz
sobre aquele que sempre foi seu
ponto cego -a crítica radical do
mundo colonizado pelo capital.
É por isso que pode identificar
nos progressistas de ontem, hoje
ajustados à ordem liberal, os condutores do que ele chama de "bloco histórico da crueldade social".
Aos colegas intelectuais que ainda
pensam que o governo Lula está
"em disputa", Arantes não só
lembra que entramos na nossa
"terceira década perdida", como
responde que discutir hoje se somos ou não um país viável "não
faz mais o menor sentido".
Equivale a dizer que a idéia de
que nossa modernização seria
uma obra incompleta é, como se
sempre foi e não sabíamos, totalmente furada, que nossa "integração" ao mundo contemporâneo é
essa que aí está, não tem "resto".
Professor aposentado da USP,
autor de livros como "Sentimento
da Dialética na Experiência Intelectual Brasileira" (Paz e Terra,
1992) e "O Fio da Meada" (Paz e
Terra, 1996), Arantes idealizou e
coordenou entre 1997 e 2001 a coleção Zero à Esquerda, da editora
Vozes, que reúne cerca de 30 títulos. Jornalista diletante, o filósofo
é há um ano e meio responsável
pelos dossiês temáticos da revista
"Reportagem", uma publicação
mensal de esquerda. E lançou no
final do ano passado a coleção Estado de Sítio, pela Boitempo. Atividades, como ele diz ironizando
seus críticos, de "um fatalista que
baniu a política do horizonte".
Folha - O seu livro começa com o
"Apagão" da era tucana e se encerra com o governo petista "Beijando
a Cruz", isto é, capitulando. O tom
dos dois ensaios é de catástrofe, e
nela a tradição do pensamento
progressista brasileiro vai pelo ralo
junto com o país. Não estão muito
carregadas essas tintas?
Paulo Arantes - Estou vendo que
vou ter que me reexplicar. Voltemos à extinção da inteligência dos
inteligentes. Tanto faz se cardosistas ou lulistas, graúdos ou miúdos, a vala é comum, a alternância
é a do sempre igual, a hegemonia
ora incha ora emagrece, mas é a
de sempre, a viagem é redonda,
como diria Raymundo Faoro.
Recomecemos pelo Febeapá
que procurei dicionarizar [no
"Diccionário de Bolso do Almanaque Philosophico Zero à Esquerda", de 1997], e o repertório
poderia se estender ao mundo-provérbio do capitalismo lulista.
A novidade é que os cocorocas da
predileção de Stanislaw Ponte
Preta provinham então da fina
flor da inteligência estabelecida.
O desastre social não se abatera
pelas mãos de desclassificados como Menem e Fujimori, mas por
um primeiro time de intelectuais
e assemelhados. A comissão de
frente materialista do refrão "não
há alternativa". O buraco negro
do pensamento já começa nesse
grau zero de imaginação.
Não é pouca coisa a chuva de estereótipos, o realejo de clichês da
parte das mais sutis e avançadas
inteligências. Do tipo "se aumentar o mínimo, quebra a Previdência" -acho que este nos acompanhará até a próxima glaciação.
Folha - É o que você chamou de
ajuste intelectual, a adaptação forçada ou consentida do pensamento
de esquerda à maré liberal?
Arantes - O eclipse do pensamento se exprime no automatismo destes estereótipos do dia, no
geral adiantadinhos, na onda de
todas as superações e quebras de
barreiras, somatória de clichês de
uma "sociedade de risco" em pleno deslanche, por isso proteção
social é encosto. É nesse mingau
que foi ficando cada vez mais difícil distinguir os
juízos peremptórios dos "marxistas distraídos" [expressão
inspirada no ensaio "O Pensamento Único e o
Marxista Distraído", que
consta do novo
livro de Arantes] e as idéias
feitas encontráveis em qualquer almanaque
da globalização
acerca dos constrangimentos
sistêmicos de toda sorte, algo
como uma cosmogonia da asneira com legendas em português progressista.
Folha - Mas isso
que você descreve e critica é a
chamada Terceira Via, uma vertente política e
intelectual que
toma corpo com
a queda do Muro de Berlim e não é
propriamente brasileira. Dá para
explicar melhor onde entram as legendas em português?
Arantes - Estou chegando à sua
questão. O ponto é que o juízo de
atribuição da desgraça social corrente à inexorabilidade de uma
causalidade sistêmica, compartilhada por marxistas invulgares e
idiotas da globalização, não é de
modo algum uma inferência cognitiva. Na opinião de um psicanalista francês, Christophe Dejours,
num caso como este em que a
crassa asneira assinala a suspensão da faculdade de julgar, seria
mais apropriado falar de uma estratégia psicológica defensiva,
graças à qual, escorados em clichês deterministas, vai se cristalizando algo como uma convivência normalizadora com o horror
econômico já naturalizado.
O ajuste intelectual tucano-petista é a incorporação da estupidez marxo-progressista ao atual
consentimento coletivo na injustiça e no sofrimento das populações, na expansão da tolerância
com o intolerável, conforme foi se
avolumando a maré sinistra das
vulnerabilidades. Quantos "sacos
de maldades" foram abertos de lá
para cá? A estupidez cresce no buraco deixado pela ausência de
pensamento dos nossos inteligentérrimos. Ela é cruel, socialmente
cruel, restando pesquisar o que
saiu de cena, o essencial que nos
fazia pensar, entendendo por
pensamento uma regulação silenciosa que se persegue para evitar a
contradição, a exceção para si mesmo.
Folha - E o que saiu
de cena e nos impediria de pensar?
Arantes - Algo que
na experiência brasileira nos fazia
pensar foi definhando, estancou a
imaginação e abriu
as comportas da
idiotia triunfante e
bem-pensante. É só
reparar nas falas familiares com que os
de cima vão se irresponsabilizando
socialmente no vocabulário da moda,
como se pode ver
até cegar num filme
espantoso, inclusive pela ambivalência, como "Cronicamente Inviável",
de Sérgio Bianchi.
Formou-se um bloco histórico da
crueldade social.
A capacidade de
julgar e refletir por
si mesmo que no
vértice superior se
eclipsou sob a capa
do mais crasso cinismo. É assim
-e ponto. E na base é mero embotamento defensivo, uma falta
de juízo que anula a vontade de
agir coletivamente diante da experiência bruta do sofrimento, da
desgraça que se está infligindo aos
outros, enquanto é atribuída a
uma calamidade sistêmica.
O psicanalista francês mencionado atrás dá mais uma volta no
parafuso na procura da junção
material entre a banalização da
injustiça social e a desnecessidade
do pensamento até esbarrar, na
sua prática clínica, na evidência
de que é pela mediação do sofrimento no destroçado mundo do
trabalho que afinal se forma mais
do que o consentimento, a colaboração com o serviço sujo da exploração. Sublinhe colaboração
-não estamos brincando!
A mesma colaboração do civilizado povo alemão naquilo que se
sabe, sem falar na dos países ocupados. Com todas as ressalvas,
mais do que óbvias, não estava
abusando da careta assustadora,
fazendo número fora de hora,
quando comecei pela revelação
da estupidez da inteligência no
Terceiro Reich segundo Adorno e
Horkheimer.
Folha - Mas nosso apagão é bem
distinto da tragédia nazista. Você
parece anunciar uma catástrofe
maior que aquela oferecida pelo
nosso suave fiasco histórico, onde
afinal nada acontece.
Arantes - De fato, não é uma catástrofe frankfurtiana. Nosso suave fiasco histórico, onde afinal nada acontece. Gostei da sua fórmula. Vamos inverter os papéis. Acabei de ler o seu "Chico Buarque"
[Publifolha, 2004], mera coincidência. A propósito, fiasco é uma
expressão traiçoeira, herda um
pouco da síndrome carcomida do
Brasil país-errado. Evoca o vexame, o papelão diante do mundo lá
fora, ou, em versão bossa-nova, a
promessa de felicidade que o nosso paraíso musical ainda está devendo ao mundo. Estou sendo injusto, você não pensa assim.
Quem sabe o correto low profile
do seu personagem não contaminou um pouco o livro, são de fato
"suaves" os tons em que se apresentam o sem-número de variações do tema recorrente "colapso
de um projeto nacional". Veja como é forte a tentação, mal e mal eu
também o acompanho "vagando
sobre escombros", num país insolvente, esquecido de si mesmo,
à beira da anomia social, ... n vezes
"inviabilizado", outra palavrinha
traiçoeira com a qual aliás joga o
tempo todo o filme do Bianchi.
É verdade que você distingue
com nitidez o regozijo caetanista,
de quem se deu bem no remelexo
desta desagregação toda, do discreto e persistente mal-estar do
seu objeto de estudo. É tudo muito em surdina, confesso que preferia a estridência de suas crônicas sobre TV -e não pelo gosto
do grotesco pelo grotesco. Em
confronto, o desmanche do Chico
é muito estilizado, quase bom-moço. Mas não é o ponto onde
quero chegar te entrevistando.
Folha - Voltemos então aos papéis de origem. Como ficamos?
Arantes - Também estou procurando identificar o vetor desagregador de todas estas mudanças,
como você diz. Não é de hoje a
sensação de que o país anda em
círculos, quando não se estafa e
sacrifica uma geração inteira justamente para não retroceder. A
sensação segundo você de que algo anda sem sair do lugar, figurada nas canções de Chico Buarque,
entra em cena, para citar dois modelos extremos, no enorme girar
em falso entre animação e fastio
identificado pelo Roberto
Schwarz na hélice que empurra a
narrativa machadiana em direção
à coisa nenhuma, nulidade porém
de uma classe proprietária confortavelmente instalada entre dois
mundos, e culmina no movimento delirante de "Cidade de Deus"
(o romance de Paulo Lins, não o
filme!), que também não leva a lugar algum, como me lembro de
Vilma Arêas [crítica literária, professora da Unicamp] ter comentado, referindo-se a um poder
neutralizador dos esforços tanto
lícitos quanto ilícitos dos pobres
para mudar de situação, ali também as coisas não andam e nada
acontece.
Tudo isto é
verdade e otimamente bem
achado e melhor ainda formulado. Mesmo assim fico
pensando.
Quanto aos artistas e sua função sismográfica, tudo bem,
mas e nós?
Folha - O entrevistador é
que pergunta.
Arantes - O
país está entrando em sua
terceira década
perdida, quase
uma geração, e
o melhor de
nossa crítica,
uma vez enunciado esse teorema crucial,
por sua vez parece que passou
a andar em círculo, mimetizando as obras
comentadas.
Não me pergunte o que fazer, que não sou bobo assim a
ponto de responder.
Ou por outra, quem sabe com a
mão de gato do outro Chico -o
de Oliveira, o homem do "Ornitorrinco" [título do posfácio escrito em 2003 ao livro "Crítica à
Razão Dualista", de 1973]. Acho
que com o esquema dele levamos
alguma chance de sair desse redemoinho conceitual em que rodopia o "nosso suave fiasco histórico". É certo que a evocação de tal
bichinho anômalo é o derradeiro
tributo que este Chico de agora
ainda presta aos antigos esquemas de emparelhamento na escala evolutiva das nações. Mas só. A
sociedade derrotada do outro
Chico -o Buarque- também
comparece, mas a cena agora é escancaradamente materialista, e as
coisas pelo menos mudam de lugar. A começar pelo entorse cavalar na tradição crítica do Brasil-em-construção, sem jogar fora,
digamos, as suas conquistas, submetidas a uma triagem das mais
drásticas.
O tal colapso deixa de ser um
naufrágio na praia, uma desconexão imerecida, para exprimir uma
integração total, perversa a mais
não poder, porém sem resto. O
"nosso" trabalho informal em
metástase anuncia o futuro do setor formal mundo afora, está aqui
um dos grandes laboratórios em
que Terceira Revolução Industrial, regime financeiro da acumulação etc. precipitaram a universalização de trabalho abstrato.
Num artigo recente, Mike Davis
[urbanista norte-americano] descreveu este panorama
avassalador como
um mundo-favela
atravessado pelo
tumulto de um gigantesco proletariado informal. Tudo em linha com a
versão crítica
-pois há uma
apologética- da
tese da brasilianização do mundo, algo
como a extensão
planetária da nossa
fratura.
Espero estar conseguindo sugerir
que a questão de saber se somos ou
não "viáveis" não
faz mais o menor
sentido. Que mesmo a idéia substantiva de desenvolvimento supõe um
quadro de normalidade capitalista que
tampouco resiste
ao menor teste de
realidade, que o digam as horrendas
sociedades que são
as máquinas chinesa e indiana de
crescimento.
Vivemos num estado de emergência econômica permanente,
não é por nada que lá no centro
do mundo volta e meia alguém
proclama que o planeta está maduro para uma nova recolonização, dos territórios relevantes, é
claro. No resumo da economista
Leda Paulani, a melhor imagem
deste "admirável mundo novo do
trabalho", como quer Ulrich
Beck, é a da brasileiríssima empregada doméstica vivendo da
mão para a boca, sem registro e
direitos quase nenhum, jornada
de trabalho elástica e indefinível,
porém proprietária de um celular.
Novamente não me pergunte o
que fazer. Só sei que a base de
uma nova política é essa. Ou é melhor falar de outra coisa.
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