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HISTÓRIA OCULTA
Apesar de apelos, presidente não revogou decreto inconstitucional de FHC que ampliou restrição a papéis
Lula mantém sigilo "eterno" de documentos
MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO
É inconstitucional o decreto do
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que ampliou até o
infinito o tempo que um documento de órgão público pode permanecer em sigilo.
A despeito de apelos recebidos
desde janeiro, quanto tomou posse, o governo de Luiz Inácio Lula
da Silva não revogou o decreto assinado por seu antecessor.
A Lei de Arquivos (número
8.159, de 91) fixa em 60 anos o prazo máximo de restrição a ""documentos sigilosos referentes à segurança da sociedade e do Estado". O decreto 4.553, editado por
FHC na última semana do seu governo, amplia os limites de todas
as categorias (reservado, confidencial, secreto e ultra-secreto),
criando o prazo de 50 anos prorrogáveis até a eternidade -portanto acima do que a lei prevê.
Decretos como o de dezembro
são atos da administração que regulamentam leis. São de autoria
do presidente da República, de
governadores ou de prefeitos.
Não podem exceder as leis que
estão a regulamentar, contradizê-las, como faz o decreto de 27 de
dezembro.
No dia 2 de janeiro, o diretor-geral do Arquivo Nacional e presidente do Conarq (Conselho Nacional de Arquivos), Jaime Antunes, escreveu em ofício que ""o decreto ultrapassa os limites impostos na referida lei".
A correspondência foi enviada
aos conselheiros e à Casa Civil da
Presidência, à qual o Arquivo Nacional se subordina.
Apelos
A Casa Civil recebeu outras
mensagens de instituições arquivísticas e de pesquisa pedindo a
revogação do decreto de FHC.
A deputada Alice Portugal (PC
do B-BA) apresentou projeto de
decreto legislativo que susta o decreto de Fernando Henrique "por
exorbitar" a lei de 1991.
"[O decreto] evidentemente está contrariando a lei", afirma o
constitucionalista Fábio Comparato. Ele aponta outro problema:
"A República é um regime em que
as coisas que estão ligadas diretamente ao povo não podem ser
apropriadas por ninguém. No caso de documentos considerados
importantes para a preservação
da segurança do Estado, esse sigilo só pode ser mantido por um
tempo adequado".
"Aberração"
Na sua opinião, o prazo de 60
anos era exagerado. O de 50 anos
renováveis para sempre, uma
"aberração".
O princípio de que "não pode
haver decreto que altere a lei" é
"elementar", afirma outro constitucionalista, Celso Bastos. Segundo ele, o decreto de dezembro "se
desmandou" (excedeu-se). Bastos também qualifica o decreto
como inconstitucional.
O decreto de FHC na reta final
de governo dificulta o acesso a toda documentação restrita do Estado, inclusive dos oito anos da
sua gestão. A lei 8.159 definiu os
contornos da política de salvaguarda de papéis sigilosos na administração pública.
Estipulou o prazo de até 30 anos
para sigilo de documentos referentes à sociedade e ao Estado,
prorrogável no máximo por mais
30 anos. O veto a acesso a papéis
sigilosos sobre a honra e a imagem das pessoas limita-se a cem
anos.
O decreto 2.134, de 1997, de autoria do próprio FHC, regulamentou a lei de 1991 com quatro classificações. Determinou o prazo de
segredo de cada uma, que poderia
ser renovado pelo mesmo período só uma vez: documentos ultra-secretos (até 30 anos de sigilo,
com renovação chegaria a 60
anos); secretos (20 anos, máximo
de 40); confidenciais (dez anos,
máximo de 20); reservados (cinco
anos, máximo de dez).
Em 2002, os limites aumentaram, por ordem, para 50 anos
(prorrogáveis indefinidamente),
30 anos (até 60), 20 anos (até 40) e
dez anos (até 20).
As mudanças nos prazos não
foram as únicas. O decreto de
1997 estipulava que a classificação
de ultra-secreto era restrita aos
presidentes da República, do
Congresso e do Supremo Tribunal Federal. O novo decreto vetou
esse poder aos chefes do Legislativo e do Judiciário e estendeu-o
aos ministros de Estado e aos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
Exemplos
A iniciativa de Fernando Henrique até agora mantida por Lula
dificulta que se conheça plenamente a história do país. Documentos secretos sobre o golpe de
1964, mesmo com o prazo máximo prorrogado, poderiam ser liberados no ano que vem, 40 anos
após sua produção. Agora podem
ser escondidos até 2024.
O maior prejuízo é para a reconstituição da trajetória do regime militar (1964-85). Antes, as
Forças Armadas diziam não existir mais certos arquivos, como o
do CIE (Centro de Informações
do Exército) -na verdade, o arquivo existe e serviu até para a elaboração de um livro (nunca publicado) após o fim da ditadura.
Agora, o Exército poderia dizer
que o arquivo existe, mas o decreto de FHC lhe faculta sigilo.
Também se atrasa o acesso a papéis dos anos Fernando Henrique
Cardoso, bem como os de Lula,
caso o atual presidente não revogue o decreto de dezembro.
Desde o início dos anos 80, os
arquivos e as instituições acadêmicas participaram das discussões sobre a legislação de sigilo de
documentos públicos.
Na década de 90, o Conarq fez a
minuta de quase todos os decretos regulamentadores, foi consultado sobre todos. Menos sobre o
de 27 de dezembro.
"Os conselheiros foram pegos
de surpresa", afirma Célia Costa,
representante do CPDOC (Centro
de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas)
no Conarq.
"Com o decreto, os interesses
do Estado acabam por ser preservados eternamente, sem que haja
nenhuma possibilidade de julgamento", diz a professora de história contemporânea na USP Maria
Aparecida de Aquino. "É completamente antidemocrático."
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