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ENTREVISTA
Para o historiador José Murilo de Carvalho, Bush pode até pôr país "no eixo do mal" sob eventual governo petista"
"Dificuldades de Lula serão proporcionais à esperança que criou"
RAFAEL CARIELLO
DA SUCURSAL DO RIO
Desde o início efetivo da democracia brasileira, em 1945, a qualidade do eleitorado brasileiro tem
melhorado, e a eleição "quase certa" de Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) é o resultado dessa "revolução passiva". A conclusão é do
historiador José Murilo de Carvalho, 63, doutor em ciência política
pela Universidade de Stanford
(EUA) e professor titular de história da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Na entrevista que concedeu à
Folha -realizada, a seu pedido,
por e-mail-, Carvalho diz que as
dificuldades a serem enfrentadas
por um possível governo Lula "serão proporcionais às esperanças
que sua candidatura despertou".
Este é o cenário de uma possível
administração petista traçado por
ele: facilidade para compor uma
base parlamentar com o PSDB,
dificuldade para lidar com expectativas irrealistas de mudança e
provável "saco de maldades do
"companheiro" Bush" -aí incluída a possibilidade de o país ser listado no "eixo do mal", ao lado do
Iraque, Cuba e Coréia do Norte.
Folha - É possível dizer, como
querem os petistas, que uma vitória de Lula seria um momento inédito na história brasileira?
Carvalho - A vitória de Lula, a essa altura quase certa, significará
uma guinada em nossa história
republicana. Em parte, por sua
origem social. Mas a novidade
não estará principalmente aí. Já tivemos presidentes de origem social parecida. O exemplo mais claro é o de Nilo Peçanha, eleito vice-presidente na chapa de Afonso
Pena para o quatriênio 1906-1909.
Com a morte do presidente, Nilo
assumiu e governou por 17 meses,
sob o lema "paz e amor". Hoje,
provavelmente se autodesignaria
Nilinho Paz e Amor. Nilo era mulato e filho de dono de padaria.
Mas Nilo, na cor mais povo que
Lula, integrara-se ao mundo da
elite republicana. Formara-se em
direito e seguira os passos tradicionais da carreira política. Lula é
mais povo pela biografia. Não se
integrou à elite, percorreu o caminho típico de um operário do setor moderno da economia, experiência que lhe deixou a marca indelével de um dedo decepado.
As exigências do marketing o levaram a podar a barba, a usar terno e gravata, a corrigir a gramática, a aceitar beber um Romanée-Conti. Mas esse não é seu mundo.
Pelo que representa, ele é um estranho no ninho da elite. Aí a
grande novidade, aí o desconforto
de alguns e a esperança de muitos.
Folha - Existia algo na sociedade
brasileira (ou nos sistemas eleitorais) que impossibilitasse essa novidade? Algo mudou?
Carvalho - No sistema eleitoral
não havia obstáculo à novidade,
ao menos desde 45. Em nosso sistema de eleição presidencial, cada
cidadão vale um voto, o que não
acontece nas eleições parlamentares. Daí a tese de Celso Furtado segundo a qual os presidentes tendiam a ser menos conservadores
do que o Congresso, o que seria
fonte permanente de tensão. O
que mudou foi o eleitor. A eleição
atual não só aponta para a escolha
de Lula, como indica a eliminação
de candidatos que representam o
que de pior sobrevive em nossa
política. Resumiria a mudança dizendo que se está consolidando
no país uma opinião pública cada
vez mais atenta, cada vez mais intolerante com a corrupção, com o
clientelismo e outras malandragens de políticos. Algo se move
entre nós, meio em surdina, como
uma revolução passiva, como
gosta de falar Luís Werneck Vianna, inspirando-se em Gramsci.
Folha - O que significa, na história do país, um parlamento em que
a maior bancada é de um partido
de esquerda, o PT?
Carvalho - Um partido de esquerda com maior bancada na
Câmara é absoluta novidade. O
fenômeno sugere que, se eliminados traços do sistema eleitoral que
falseiam a representação, sobretudo os referentes à desigualdade
entre eleitores de diferentes Estados e à lista aberta que desloca votos para candidatos não escolhidos pelo eleitor, talvez possamos
reduzir a distância entre a representatividade do presidente e dos
congressistas apontada por Celso
Furtado. Essa redução facilitaria a
formação de bases parlamentares.
Uma coalizão exclusivamente
de esquerda me parece matematicamente impossível. O que é possível e o que me parece a melhor
solução para o país seria uma coalizão de centro-esquerda, da qual
o PSDB deveria fazer parte. É de
se esperar que as cicatrizes da
campanha, sobretudo do segundo turno, não impeçam tal aliança. Do contrário, o PT teria que
depender da direita, numa esdrúxula coalizão de esquerda-direita.
Folha - A que se deve o mau desempenho de José Serra? A uma
inabilidade para compor politicamente? Ao peso de ser governo?
Carvalho - Às duas coisas. Independentemente do que dirá a história, oito anos de governo FHC
trouxeram desgaste inegável para
o presidente. Era tarefa quase impossível a um candidato carregar
a herança do situacionismo e ao
mesmo tempo convencer o eleitor
de que representaria mudança.
Serra não se revelou um candidato à altura da tarefa. Foi racional,
quando se pedia carisma e emoção; foi desajeitado, quando se pedia desenvoltura no trato com o
povo; e ingênuo, quando se pedia
jogo de cintura. Daria um ótimo
candidato a primeiro-ministro.
Folha - Como a história vai julgar
os oito anos de FHC?
Carvalho - A história costuma
discordar dos contemporâneos.
Foi o caso de Getúlio Vargas, deposto duas vezes. De JK, derrotado na sucessão. A nos guiarmos
pela grande aceitação popular de
Lula, o governo de FHC seria avaliado muito negativamente.
Minha impressão, no entanto, é
que a história lhe será mais simpática. As razões para uma avaliação futura positiva seriam sobretudo as seguintes: a estabilidade
da moeda, o aumento da transparência nas ações governamentais,
a luta pela responsabilidade fiscal,
o comportamento consistentemente tolerante e democrático do
presidente, o prestígio internacional que conferiu ao país, o acerto
de contas com as vítimas da ditadura, a luta constante em favor
dos direitos humanos, os avanços
na área da educação fundamental
e, finalmente, a passagem tranquila do governo ao sucessor.
Folha - Um governo Lula pode encontrar dificuldades se não conseguir atender as demandas sociais
reprimidas que a sua candidatura
parece representar? De que tipo?
Carvalho - As dificuldades serão
proporcionais às esperanças que
sua candidatura despertou. Terá
que evitar o perigo do abraço
mortal do apoio conservador que,
ao lhe dar base de governo, pode
lhe descaracterizar o programa.
Terá que lidar com a cobrança
dos setores mais militantes que o
apóiam, dentro e fora do PT, que
exigirão mudanças rápidas.
Terá ainda que haver-se com a
armadilha criada pela grande expectativa de mudança que gerou
na população, totalmente desproporcional em relação às possibilidades realistas de atendimento. A
vontade de não desapontar tanta
esperança e a necessidade de ter
que deixar por menos será o fantasma que perseguirá o governo.
Folha - Lula e Serra já manifestaram restrições à Alca tal como ela é
proposta pelos EUA. Que tipo de dificuldades o presidente pode ter
com o governo George Bush?
Carvalho - Do companheiro
Bush, um eventual governo Lula
pode esperar um saco sem fundo
de maldades: imposição de sua
agenda antiterrorista, exigência
de enquadramento nas políticas
do FMI, abertura de nosso mercado, fechamento do dele. Quem sabe, até mesmo encaixar o Brasil
no eixo do mal? A gerência das relações exteriores exigirá muita firmeza para não ceder e muita
competência para evitar reações
amadorísticas.
Folha - O sr. vislumbra alguma
possibilidade de transformação da
desigualdade social no país?
Carvalho - Não consigo visualizar a sobrevivência de nossa democracia política se ela não for capaz de produzir alguma democracia social. Se há um ponto em que
um eventual governo Lula pode e
deve imprimir sua marca é este.
Será seu desempenho nesse campo que nos dirá no futuro se sua
eleição significou de fato uma virada na história do país.
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