São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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JANIO DE FREITAS

Mistérios no céu

Um homem de mãos atadas. E dominado por temores.
Essa é a imagem, induzida progressivamente nos primeiros 12 a 15 meses do atual governo, que fiz de Lula na presidência. Não a tenho mais. A imagem, que é uma hipótese, tornou-se convicção. Não por si mesma. Foi transformada por Lula e sua tibieza em convicção.
É fácil concordar com a percepção, generalizada, de que Lula se sente no céu, e o que se passa abaixo das nuvens é indiferente ao seu êxtase. Os deslumbramentos de Fernando Henrique e Fernando Collor não foram menores, e foram até mais patéticos, um com os exibicionismos físicos, o outro com a presunção intelectual. O chamado deslumbramento é primário, mas é o de menos.
Sem prejudicar o seu encantamento com o nirvana presidencial, o que dá a idéia de um Lula de mãos atadas é mais e é diferente disso. E, por ora, sem evidência da origem de tamanha limitação. Mas com abundância de exemplos factuais que ajudam a notar o homem de mãos atadas, sabe-se lá por que comprometimentos, e contido por medos injustificados. Dois casos, nesse sentido, são suficientes para ilustrar o que se passa sob a denominação de presidência. Mais recente, um pode ser a substituição do ministro da Defesa.
A nota oficial de apologia dos crimes cometidos por oficiais, nos quartéis da ditadura, compôs-se de rica variedade: desacato às leis do país, pelo teor; insulto à sociedade, por sua prepotência; quebra da ordem e da hierarquia militar e funcional; e, para não irmos mais longe, desafio à autoridade presidencial. A ser verdade que o Exército emitiu a nota sem conhecimento do seu comandante, estaria caracterizada a incapacidade de comando justificadora de pronta designação de novo comandante; sendo inverdadeiro o desconhecimento prévio, o próprio comando do Exército era parte do ato comprometedor do governo e do presidente, cuja autoridade só se recomporia com o pronto afastamento do desafiante.
Só houve uma segunda nota, de sucinta negação ao sentido subversivo da anterior, porque o então ministro da Defesa se mostrou irredutível ao exigi-la. O comandante do Exército resistiu ao próprio Lula, que precisou fazer, ele mesmo, um remendo de última hora no texto, para torná-lo um pouco menos fugidio.
Quem saiu, com um pedido de demissão digno, foi o ministro José Viegas. E Lula, temeu ser derrubado só porque decidisse trocar o comandante do Exército, em nome da ordem constitucional e da disciplina? Se não houve tal indistinção entre fantasia e realidade, por que a atitude tão temerosa? O fato é que Lula se portou, em todo o episódio, como se fosse ele o infrator.
Outro exemplo, entre tantos possíveis, é a presidência do Banco Central. Lula teve à sua disposição, como tem ainda, uma infinidade de pessoas com idêntica ou maior habilitação que Henrique Meirelles para o cargo. O que se passou, no entanto, foi o acinte da entrega do Banco Central do Brasil ao então presidente do Bank Boston, nem ao menos da sucursal brasileira, mas da própria matriz norte-americana desse banco. De quem se tratava? De alguém que se filiou, não ao PT ou a partido aliado do PT, mas ao adversário PSDB, apoiou a candidatura de José Serra e obteve, com mais despesa do que campanha, um mandato de deputado federal peessedebista por Goiás. Como e por que foi içado daí para a presidência do Banco Central no governo Lula? Nem Lula, nem ninguém no governo, teve jamais condições de dar ao seu eleitorado uma explicação admissível.
Note-se ainda: antes mesmo da formalidade de diplomação, Henrique Meirelles abdicou do mandato, renunciou à sua eleição, porque ia receber a presidência do Banco Central. Alguém que anunciara o início de uma carreira política, de grandes ambições, só abriria mão de um mandato, para assumir um cargo no governo, se protegido por condições excepcionalíssimas. Indemissível, autonomia, carta branca, o que mais?
Lula e seu governo estão envolvidos em mistérios. E, no caso, mistérios são sinônimos de comprometimentos, que atam mãos e inspiram mais medos do que os naturais. Um dia isso se esclarece, queiram ou não o próprio Lula, José Dirceu, Luiz Gushiken e Antonio Palocci.


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