São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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NO PLANALTO

Previdência flerta com improbidade administrativa

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Com FHC , tentou-se a esquerda pseudo-esclarecida. Com Lula, apostou-se na hipotética esquerda popular. Atônitas, as pessoas já se perguntam: e se a esquerda for isso mesmo?
Alheio ao assombro, o ex-PT consolida o verdadeiro milagre brasileiro: uma sociedade isenta de sentido social. Que o digam os aposentados. Estão habituados a purgar nas filas as culpas passadas. Porém, uma pane nos computadores adicionou crueldade à penitência.
Nos últimos dias, postos do INSS converteram-se em sucursais do inferno. O tumulto fez lembrar a infame tentativa de recadastramento de anciões do ano passado. Difícil saber do que é que estão abusando mais, se da paciência dos velhos ou da ingenuidade da Viúva.
O caos previdenciário é como rocha sedimentar. Resulta da decomposição de velhos detritos. Empilhados em camadas, vão sedimentando devagarinho. Sob Lula, não pára de crescer.
Agora mesmo, a pretexto de agilizar o atendimento aos aposentados, o peemedebista Carlos Bezerra, presidente do INSS, encomendou ao petista José Jairo Cabral, presidente da Dataprev, a troca de 16.631 microcomputadores instalados em pontos de atendimento da Previdência.
Optou-se por alugar as máquinas por um período de quatro anos. A um custo estimado de R$ 262 milhões. A cifra embute acessórios e manutenção.
Organizaram-se dois pregões. O primeiro resultou na contratação da Siemens. Assinou com a Dataprev um contrato de R$ 145,9 milhões (locação de 7.000 microcomputadores, mais acessórios).
Os procuradores da República José Alfredo de Paula e Silva e Raquel Branquinho sentiram cheiro de queimado. Obtiveram liminar judicial sustando a entrega da encomenda. E comunicaram o caso ao TCU, por cujos escaninhos transitam vários processos contra a Dataprev.
Relator do caso, o ministro Ubiratan Aguiar determinou que fosse sobrestado também o segundo pregão. Visava a locação de mais 9.631 microcomputadores.
Os autos que correm na Justiça e no TCU contêm documentos nauseantes. São três as principais peças: um relatório da Controladoria Geral da União, uma avaliação de técnicos do Ministério Público e uma auditoria do TCU.
Folheando o papelório, o repórter compôs o seguinte quadro:
1) a Dataprev optou pelo aluguel dos equipamentos sem realizar estudos técnicos que atestassem o acerto da providência;
2) recolheram-se indícios de que as especificações anotadas nos editais direcionaram os pregões para micros da marca Novadata, orçados pela Siemens;
3) colecionaram-se evidências de superfaturamento. Pesquisas paralelas de preços mostram que a compra de equipamentos sairia mais barato do que a locação;
4) o contrato firmado com a Siemens contempla cláusulas de reajuste que, se aplicadas, elevarão os preços a patamares ainda mais incompatíveis com os preços de mercado;
5) a divisão da locação em dois pregões visou driblar a lei. Evitou-se a realização de audiência pública, obrigatória em aquisições de mais de R$ 150 milhões.
O caso foi submetido ao plenário do TCU na última quarta-feira. Aprovou-se o cancelamento da operação. Está viciada por "diversas irregularidades".
Ouvido pelo repórter, Carlos Bezerra, o presidente do INSS, disse que já determinou o cancelamento da locação. Reafirmou, porém, a necessidade de modernização tecnológica dos postos de atendimento da Previdência. Quer debater alternativas com a Procuradoria da República e com o TCU.
A despeito do recuo, Bezerra e os gestores da Dataprev não escaparão de um processo por improbidade administrativa. Será movido pelo Ministério Público nos próximos dias.
Abespinhada, a Siemens não parece disposta a aceitar passivamente o cancelamento do seu contrato de R$ 145,9 milhões. Alega que já encomendara os equipamentos. Deve ir aos tribunais.
Quanto aos aposentados, continuarão submetidos à inclemência da incúria administrativa. A mera troca de computadores não garante a melhoria instantânea no atendimento.
A ruína da Dataprev resulta de um descaso de 30 anos. A autarquia tornou-se escrava tecnológica. Vinha alugando seus supercomputadores, desde os primórdios, de um único fabricante, a multinacional Unisys.
As máquinas funcionam num ambiente de "plataforma fechada". Ou seja, não rodam softwares de outras marcas. Envenenados por preços sobrevalorizados, os contratos com a Unisys foram firmados sem licitação.
A Previdência convive há anos com o diagnóstico que preceitua a migração de seus dados para um "sistema aberto", compatível com outros bancos de dados públicos. Sob FHC, o governo deu de ombros. Sob Lula, a migração caminha a passos de tartaruga manca.
Na quinta-feira, reuniram-se em Brasília os gestores da Previdência, do INSS e da Dataprev. Decidiu-se constituir uma comissão. Terá 15 dias para formular uma boa explicação acerca das causas do martírio que infelicita os aposentados.
As declarações que se seguiram ao encontro passaram a impressão de que a coisa está sob controle. Só não se sabe ainda de quem.


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