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QUAL REPRESENTAÇÃO?
Para Wanderley Guilherme, projeto engessa democracia
Reforma "oligarquiza" disputa política, afirma especialista
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O governo Luiz Inácio Lula da
Silva administra mal as críticas,
avalia Wanderley Guilherme dos
Santos, 69. Para o professor do Iuperj (Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio de Janeiro), um
dos principais cientistas políticos
do país, é o próprio governo o responsável, em última instância, pelo aumento do tom da crítica, pelas insatisfações se tornarem "irremediáveis, intransponíveis e irreversíveis" e pelos rompimentos
daí decorrentes -que têm se intensificado nas últimas semanas.
Além disso, diz, "querer ter um
governo absolutamente homogêneo é meio fascistóide".
Falando sobre o cenário para
2006, Wanderley Guilherme contraria a maioria das análises que
se seguiram às eleições municipais e afirma que dificilmente o
governador Geraldo Alckmin
(PSDB-SP) será candidato à Presidência. Na disputa interna do
partido, ele diz, o tucano leva desvantagem por ser paulista.
O cientista político também critica o projeto de reforma política
em tramitação no Congresso,
afirmando que, se aprovada tal
como está, provocaria "uma desorganização geral na vida partidária brasileira".
Folha - Um dos pontos invocados
para justificar a reforma política é
a "excessiva fragmentação do quadro partidário". O sr. concorda?
Wanderley Guilherme dos Santos
- É um dogma. O que se chama de
fragmentação -que é apenas um
número razoável de legendas-
significa uma dispersão real de
forças, que seria um Parlamento
totalmente desagregado. Isso não
é verdade. Você tem uma proliferação de legendas, que todavia se
aglutinam em duas ou três coalizões parlamentares. Na verdade,
em termos agregados, você tem
dois ou três atores. E, depois dos
dois mandatos do Fernando Henrique, você tem praticamente só
dois -um capitaneado pelo
PSDB, e outro, pelo PT.
Nós temos hoje 19 partidos parlamentarmente representados,
entre 30 que concorrem nas eleições. Nós não temos 19 opiniões
sobre cada ponto de pauta. Por
que então esses partidos estão lá?
Para apresentar propostas e fazer
reivindicações que não aparecem
na pauta que os grandes partidos
têm e que o Executivo tem. É tão
simples quanto isso.
Folha - E a cláusula de barreira,
que imporá 5% ou 2% de votação
mínima para ter representação no
Congresso. É necessária?
Wanderley Guilherme - Não vejo
necessidade, seja qual for o vício
que se aponte no funcionamento
da democracia brasileira -e ela
tem vários, como todas elas têm.
Essas pesquisas que saem, mostrando que os partidos são mal
considerados pela opinião publica, isso é assim na Europa inteira.
Porque é da própria essência da
democracia, exatamente porque
todo mundo participa e todo
mundo tem direito a demandar, e
como obviamente nenhum governo pode atender a todas as demandas, a insatisfação é o estado
da democracia. Você só tem um
governo em que ninguém reclama onde não se pode reclamar.
Não é necessário diminuir o número dos partidos, porque não há
nada que se possa apontar como
deficiência do funcionamento da
democracia brasileira que possa
ser atribuído claramente ao fato
de que existem 19 legendas representadas no parlamento.
Folha - Os pequenos partidos têm
função para a democracia?
Wanderley Guilherme - Têm. Se
você vai no faroeste brasileiro,
que é o extremo norte e o centro-oeste, você vai ver que é lá que as
pequenas legendas obtêm votação. Porque lá não é racional para
os grandes partidos disputarem.
O investimento que têm que fazer
-criar diretórios, botar gente, fazer propaganda- para conseguir
um ou dois deputados, que eles
não precisam... Tanto que você
não tem todos os grandes partidos brasileiros disputando em todos os municípios. Você vai lá no
extremo norte, quem está lá? É
PRTB, é PS-não-sei-das-quantas.
O que estão fazendo? Organizando a vida política. Colocando dentro da vida política institucionalizada o que de outra maneira continuaria sendo faroeste -e aliás
continua sendo, em grande parte.
Folha - O sr. vê problemas na proposta de mudança para votação
por listas fechadas?
Wanderley Guilherme - Não existe um sistema eleitoral igual ao
outro. O nome não é correto: todos são de lista [de candidatos por
partido]. Existe a lista pré-ordenada e existe a lista sem ordenação. O Brasil faz parte de um grupo de países que não tem lista pré-ordenada. As listas são apresentadas por ordem alfabética. Na lista
pré-ordenada, são duas modalidades. A fechada, propriamente
dita, em que você não pode alterar
a ordem dos candidatos, você vota na legenda e as vagas no Congresso são preenchidas pela ordem dos candidatos na lista do
partido; se o partido conquistar
40 cadeiras, os 40 primeiros da lista são os eleitos, embora você conheça os candidatos e conheça a
lista. Não é essa maluquice que está sendo proposta, que é a lista secreta, em que não se conhece o
nome de todos os candidatos na
lista. Isso não existe. Outra, chamada lista pré-ordenada preferencial. Ela vem pré-ordenada, o
que expressa a opinião da direção
do partido, mas o eleitor pode votar no nome que quiser. Ele pode
votar só na legenda, ou ele pode
alterar. A que está sendo proposta
é uma lista pré-ordenada fechada.
Folha - O argumento é que isso
reforçaria os partidos.
Wanderley Guilherme - Não. Reforçaria as direções partidárias. É
uma medida oligarquizante. O
poder vai para a burocracia do
partido.
Folha - O sr. já se referiu a intervenções desse tipo -reengenharias do sistema eleitoral de cima
para baixo- como ações de uma
elite que tem medo da democracia.
Wanderley Guilherme - É o caso.
Não é por "terem medo da democracia" que preferem o autoritarismo. É que têm medo da competição. Quanto menos competição,
melhor. Se você pegar a competição no Brasil, é brava. Quem não
gostar disso, que mude de profissão. Competição, em democracia
de massas, só reduz se botar o voto distrital. A competição é feroz.
É bom que seja.
Folha - Quais as conseqüências se
o projeto for aprovado como está?
Wanderley Guilherme - A primeira coisa que vai acontecer é
uma desorganização geral na vida
partidária brasileira. Você vai ter
uma briga infernal dentro dos
partidos para estar na lista nos
primeiros lugares. Talvez a taxa
de votos nulos e abstenção aumente muito, porque o eleitor
não vai aceitar de cara que ele não
possa votar no seu preferido. São
50 anos de vida eleitoral, de competição. Pensar que foram 50 anos
de bobagem é uma loucura.
Folha - Como o sr. vê a proposta
da OAB, de aumentar a possibilidade de realização de plebiscitos, e
que chega a falar na realização de
plebiscitos para a revogação coletiva de mandatos legislativos?
Wanderley Guilherme - Plebiscito e referendo -e a iniciativa popular de legislação- são figuras
consagradas na nossa Constituição. São bem razoáveis, devem ser
regulamentadas e usadas. Como
princípio democrático, sou totalmente favorável. Agora, é preciso
saber como regulamenta e como
isso é feito. A propósito da figura
do "recall" de uma Câmara inteira,
isso é uma maluquice, fora de cogitação. De representantes em
particular, tudo bem.
Outro dia ouvi uma declaração:
com a internet, você rapidinho
vota. É loucura. Alteram de tal
maneira certas dimensões do pacto constitucional, a estruturação
da vida política, que não se faz assim, só porque pode votar rápido.
Folha - Análises anteriores às
eleições municipais falavam do risco de o PT se tornar um partido
quase-único. Agora fala-se em vitória do PSDB. Procede?
Wanderley Guilherme - Estávamos conversando sobre propostas de legislação por conta do "perigo" que é a existência de um sistema altamente fragmentado.
Agora estamos falando de declarações que davam como possibilidade imediata, real, de um partido único [risos]. Você vê a turma
como é. Mas é natural, é a política.
As vitórias em Porto Alegre e
em São Paulo não autorizam nada
para daqui a dois anos. Foram tão
disputadas, a quantidade de votos
do PT foram de tal natureza, que
você não pode considerar que seja
uma brincadeira. Ou seja, a próxima eleição ninguém sabe. O que
ficou claro é que o eleitorado dá
banho nos analistas. Não se pode
dar nada como favas contadas.
Folha - Os resultados não dizem
nada sobre a possibilidade de reeleição do Lula?
Wanderley Guilherme - Não dizem nada. Mas já não diziam nada antes. O Fernando Henrique
deu uma declaração recente de
que o Lula não é imbatível. Tem
toda razão. Mas isso não é de agora, não. Acho isso desde o dia que
ele tomou posse. Depende muito
do governo e de uma série de circunstâncias que nem estão contidas no futuro próximo.
O presidente Lula tomou posse
em janeiro de 2003, e já estava o
pessoal discutindo quem seria o
seu adversário em 2006.
Folha - É precipitado apostar na
candidatura do Alckmin à Presidência. Por quê?
Wanderley Guilherme -Para comandar o pólo das oposições, o
PSDB vai ter que passar por alguns problemas internos e de
possíveis aliados -o PFL. Não é
uma decisão automática. Será resultado de uma competição política interna das forças de oposição. Nessa competição, o Alckmin leva uma desvantagem. Não
pelo fato de não ser conhecido nacionalmente -com um mês de
campanha, passa a ser conhecido
no país inteiro. Mas pelo fato,
realmente, de ser paulista. Existe
no Brasil, como em todo lugar, razões ligadas às identidades regionais. Ter de novo, pela quarta vez,
uma disputa entre dois paulistas...
A última já foi meio complicada, com o episódio da Roseana
[Sarney]. Provocou uma série de
turbulências e certamente foi uma
das razões da derrota do José Serra. Ele teve uma excelente votação
-sem o PFL. Sem o PTB. Se o PT
não tomar cuidado, essa coligação volta a se fazer. E por isso, o
PT não é imbatível.
Mas quanto mais você fizer uma
política para formar uma coligação de oposição, mais problemas
você vai ter com quem vai ser o
candidato da chapa em função de
outras questões que não são a de
ser oposicionista. Acho muito
pouco provável que seja [o Alckmin]. Não é que o país seja contra
São Paulo. Mas em certas circunstâncias, isso vira questão política.
Folha - As saídas recentes de assessores de Lula e de integrantes
do governo são, para usar sua expressão, "vazamentos à esquerda'?
Wanderley Guilherme - Acho que
sim. O governo não está sabendo
administrar bem as críticas. Porque críticas o Fernando Henrique
também teve, não só à esquerda,
como à direita também. Foi muito
competente, soube administrá-las e não deixar isso coalescer numa posição. O núcleo do poder do
PT está deixando correr frouxo,
como se isso não tivesse nenhuma
importância.
Acontece que as insatisfações,
se não são bem administradas
-e na verdade acho que não estão nem sendo levadas em conta-, começam a ser vocalizadas.
E como também não são administradas corretamente, aumentam o tom. Como vem acontecendo. Não é de ontem ou da semana
passada que o [Carlos] Lessa [que
acaba de sair do BNDES] está insatisfeito. Também não é de ontem ou da semana passada que ele
vem dizendo o que não deveria
dizer. Mas, possivelmente, como
ele não é escutado nem administrado adequadamente, a tendência foi de gritar cada vez mais.
Folha - Essa administração de que
o sr. fala não precisa ser uma mudança na política do governo?
Santos - Não precisa ser uma
mudança integral. Mas você tem
que dar satisfação aos seus executores. Você não pode ter executores que não estão entendendo da
sua política ou estão contra partes
dela. Se você não levar em consideração a opinião deles... Querer
ter um governo absolutamente
homogêneo é um negócio meio
fascistóide. Outra coisa é você ter
um governo em que alguém não
está satisfeito, mas daqui a pouco
levou uma melhor numa outra, e
vai acomodando porque esse é o
melhor do pior dos mundos. Se
você não souber fazer isso, as insatisfações se tornam irremediáveis, intransponíveis e irreversíveis. Pronto. Aí rompe.
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