São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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QUAL REPRESENTAÇÃO?

Para Wanderley Guilherme, projeto engessa democracia

Reforma "oligarquiza" disputa política, afirma especialista

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

O governo Luiz Inácio Lula da Silva administra mal as críticas, avalia Wanderley Guilherme dos Santos, 69. Para o professor do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), um dos principais cientistas políticos do país, é o próprio governo o responsável, em última instância, pelo aumento do tom da crítica, pelas insatisfações se tornarem "irremediáveis, intransponíveis e irreversíveis" e pelos rompimentos daí decorrentes -que têm se intensificado nas últimas semanas.
Além disso, diz, "querer ter um governo absolutamente homogêneo é meio fascistóide".
Falando sobre o cenário para 2006, Wanderley Guilherme contraria a maioria das análises que se seguiram às eleições municipais e afirma que dificilmente o governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) será candidato à Presidência. Na disputa interna do partido, ele diz, o tucano leva desvantagem por ser paulista.
O cientista político também critica o projeto de reforma política em tramitação no Congresso, afirmando que, se aprovada tal como está, provocaria "uma desorganização geral na vida partidária brasileira".
 

Folha - Um dos pontos invocados para justificar a reforma política é a "excessiva fragmentação do quadro partidário". O sr. concorda?
Wanderley Guilherme dos Santos -
É um dogma. O que se chama de fragmentação -que é apenas um número razoável de legendas- significa uma dispersão real de forças, que seria um Parlamento totalmente desagregado. Isso não é verdade. Você tem uma proliferação de legendas, que todavia se aglutinam em duas ou três coalizões parlamentares. Na verdade, em termos agregados, você tem dois ou três atores. E, depois dos dois mandatos do Fernando Henrique, você tem praticamente só dois -um capitaneado pelo PSDB, e outro, pelo PT.
Nós temos hoje 19 partidos parlamentarmente representados, entre 30 que concorrem nas eleições. Nós não temos 19 opiniões sobre cada ponto de pauta. Por que então esses partidos estão lá? Para apresentar propostas e fazer reivindicações que não aparecem na pauta que os grandes partidos têm e que o Executivo tem. É tão simples quanto isso.

Folha - E a cláusula de barreira, que imporá 5% ou 2% de votação mínima para ter representação no Congresso. É necessária?
Wanderley Guilherme -
Não vejo necessidade, seja qual for o vício que se aponte no funcionamento da democracia brasileira -e ela tem vários, como todas elas têm. Essas pesquisas que saem, mostrando que os partidos são mal considerados pela opinião publica, isso é assim na Europa inteira. Porque é da própria essência da democracia, exatamente porque todo mundo participa e todo mundo tem direito a demandar, e como obviamente nenhum governo pode atender a todas as demandas, a insatisfação é o estado da democracia. Você só tem um governo em que ninguém reclama onde não se pode reclamar.
Não é necessário diminuir o número dos partidos, porque não há nada que se possa apontar como deficiência do funcionamento da democracia brasileira que possa ser atribuído claramente ao fato de que existem 19 legendas representadas no parlamento.

Folha - Os pequenos partidos têm função para a democracia?
Wanderley Guilherme -
Têm. Se você vai no faroeste brasileiro, que é o extremo norte e o centro-oeste, você vai ver que é lá que as pequenas legendas obtêm votação. Porque lá não é racional para os grandes partidos disputarem. O investimento que têm que fazer -criar diretórios, botar gente, fazer propaganda- para conseguir um ou dois deputados, que eles não precisam... Tanto que você não tem todos os grandes partidos brasileiros disputando em todos os municípios. Você vai lá no extremo norte, quem está lá? É PRTB, é PS-não-sei-das-quantas. O que estão fazendo? Organizando a vida política. Colocando dentro da vida política institucionalizada o que de outra maneira continuaria sendo faroeste -e aliás continua sendo, em grande parte.

Folha - O sr. vê problemas na proposta de mudança para votação por listas fechadas?
Wanderley Guilherme -
Não existe um sistema eleitoral igual ao outro. O nome não é correto: todos são de lista [de candidatos por partido]. Existe a lista pré-ordenada e existe a lista sem ordenação. O Brasil faz parte de um grupo de países que não tem lista pré-ordenada. As listas são apresentadas por ordem alfabética. Na lista pré-ordenada, são duas modalidades. A fechada, propriamente dita, em que você não pode alterar a ordem dos candidatos, você vota na legenda e as vagas no Congresso são preenchidas pela ordem dos candidatos na lista do partido; se o partido conquistar 40 cadeiras, os 40 primeiros da lista são os eleitos, embora você conheça os candidatos e conheça a lista. Não é essa maluquice que está sendo proposta, que é a lista secreta, em que não se conhece o nome de todos os candidatos na lista. Isso não existe. Outra, chamada lista pré-ordenada preferencial. Ela vem pré-ordenada, o que expressa a opinião da direção do partido, mas o eleitor pode votar no nome que quiser. Ele pode votar só na legenda, ou ele pode alterar. A que está sendo proposta é uma lista pré-ordenada fechada.

Folha - O argumento é que isso reforçaria os partidos.
Wanderley Guilherme -
Não. Reforçaria as direções partidárias. É uma medida oligarquizante. O poder vai para a burocracia do partido.

Folha - O sr. já se referiu a intervenções desse tipo -reengenharias do sistema eleitoral de cima para baixo- como ações de uma elite que tem medo da democracia. Wanderley Guilherme - É o caso. Não é por "terem medo da democracia" que preferem o autoritarismo. É que têm medo da competição. Quanto menos competição, melhor. Se você pegar a competição no Brasil, é brava. Quem não gostar disso, que mude de profissão. Competição, em democracia de massas, só reduz se botar o voto distrital. A competição é feroz. É bom que seja.

Folha - Quais as conseqüências se o projeto for aprovado como está?
Wanderley Guilherme -
A primeira coisa que vai acontecer é uma desorganização geral na vida partidária brasileira. Você vai ter uma briga infernal dentro dos partidos para estar na lista nos primeiros lugares. Talvez a taxa de votos nulos e abstenção aumente muito, porque o eleitor não vai aceitar de cara que ele não possa votar no seu preferido. São 50 anos de vida eleitoral, de competição. Pensar que foram 50 anos de bobagem é uma loucura.

Folha - Como o sr. vê a proposta da OAB, de aumentar a possibilidade de realização de plebiscitos, e que chega a falar na realização de plebiscitos para a revogação coletiva de mandatos legislativos?
Wanderley Guilherme -
Plebiscito e referendo -e a iniciativa popular de legislação- são figuras consagradas na nossa Constituição. São bem razoáveis, devem ser regulamentadas e usadas. Como princípio democrático, sou totalmente favorável. Agora, é preciso saber como regulamenta e como isso é feito. A propósito da figura do "recall" de uma Câmara inteira, isso é uma maluquice, fora de cogitação. De representantes em particular, tudo bem.
Outro dia ouvi uma declaração: com a internet, você rapidinho vota. É loucura. Alteram de tal maneira certas dimensões do pacto constitucional, a estruturação da vida política, que não se faz assim, só porque pode votar rápido.

Folha - Análises anteriores às eleições municipais falavam do risco de o PT se tornar um partido quase-único. Agora fala-se em vitória do PSDB. Procede?
Wanderley Guilherme -
Estávamos conversando sobre propostas de legislação por conta do "perigo" que é a existência de um sistema altamente fragmentado. Agora estamos falando de declarações que davam como possibilidade imediata, real, de um partido único [risos]. Você vê a turma como é. Mas é natural, é a política.
As vitórias em Porto Alegre e em São Paulo não autorizam nada para daqui a dois anos. Foram tão disputadas, a quantidade de votos do PT foram de tal natureza, que você não pode considerar que seja uma brincadeira. Ou seja, a próxima eleição ninguém sabe. O que ficou claro é que o eleitorado dá banho nos analistas. Não se pode dar nada como favas contadas.

Folha - Os resultados não dizem nada sobre a possibilidade de reeleição do Lula?
Wanderley Guilherme -
Não dizem nada. Mas já não diziam nada antes. O Fernando Henrique deu uma declaração recente de que o Lula não é imbatível. Tem toda razão. Mas isso não é de agora, não. Acho isso desde o dia que ele tomou posse. Depende muito do governo e de uma série de circunstâncias que nem estão contidas no futuro próximo.
O presidente Lula tomou posse em janeiro de 2003, e já estava o pessoal discutindo quem seria o seu adversário em 2006.

Folha - É precipitado apostar na candidatura do Alckmin à Presidência. Por quê?
Wanderley Guilherme -
Para comandar o pólo das oposições, o PSDB vai ter que passar por alguns problemas internos e de possíveis aliados -o PFL. Não é uma decisão automática. Será resultado de uma competição política interna das forças de oposição. Nessa competição, o Alckmin leva uma desvantagem. Não pelo fato de não ser conhecido nacionalmente -com um mês de campanha, passa a ser conhecido no país inteiro. Mas pelo fato, realmente, de ser paulista. Existe no Brasil, como em todo lugar, razões ligadas às identidades regionais. Ter de novo, pela quarta vez, uma disputa entre dois paulistas...
A última já foi meio complicada, com o episódio da Roseana [Sarney]. Provocou uma série de turbulências e certamente foi uma das razões da derrota do José Serra. Ele teve uma excelente votação -sem o PFL. Sem o PTB. Se o PT não tomar cuidado, essa coligação volta a se fazer. E por isso, o PT não é imbatível.
Mas quanto mais você fizer uma política para formar uma coligação de oposição, mais problemas você vai ter com quem vai ser o candidato da chapa em função de outras questões que não são a de ser oposicionista. Acho muito pouco provável que seja [o Alckmin]. Não é que o país seja contra São Paulo. Mas em certas circunstâncias, isso vira questão política.

Folha - As saídas recentes de assessores de Lula e de integrantes do governo são, para usar sua expressão, "vazamentos à esquerda'?
Wanderley Guilherme -
Acho que sim. O governo não está sabendo administrar bem as críticas. Porque críticas o Fernando Henrique também teve, não só à esquerda, como à direita também. Foi muito competente, soube administrá-las e não deixar isso coalescer numa posição. O núcleo do poder do PT está deixando correr frouxo, como se isso não tivesse nenhuma importância.
Acontece que as insatisfações, se não são bem administradas -e na verdade acho que não estão nem sendo levadas em conta-, começam a ser vocalizadas. E como também não são administradas corretamente, aumentam o tom. Como vem acontecendo. Não é de ontem ou da semana passada que o [Carlos] Lessa [que acaba de sair do BNDES] está insatisfeito. Também não é de ontem ou da semana passada que ele vem dizendo o que não deveria dizer. Mas, possivelmente, como ele não é escutado nem administrado adequadamente, a tendência foi de gritar cada vez mais.

Folha - Essa administração de que o sr. fala não precisa ser uma mudança na política do governo?
Santos -
Não precisa ser uma mudança integral. Mas você tem que dar satisfação aos seus executores. Você não pode ter executores que não estão entendendo da sua política ou estão contra partes dela. Se você não levar em consideração a opinião deles... Querer ter um governo absolutamente homogêneo é um negócio meio fascistóide. Outra coisa é você ter um governo em que alguém não está satisfeito, mas daqui a pouco levou uma melhor numa outra, e vai acomodando porque esse é o melhor do pior dos mundos. Se você não souber fazer isso, as insatisfações se tornam irremediáveis, intransponíveis e irreversíveis. Pronto. Aí rompe.


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