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JANIO DE FREITAS
As vozes do povão
Os financiadores do desfile no Sambódromo não
deviam ser os banqueiros do bicho. Tinham que ser os fabricantes de silicone.
A publicidade carioca diz que o
desfile é "o maior espetáculo do
mundo". Logo, o desfile é o
maior, mais longo e talvez mais
indiscutível anúncio de um produto no mundo todo. Anúncio e
ao mesmo tempo prova, para
quem quiser ver, das propriedades milagrosas do produto. O silicone é rival da mão de Deus.
Com a fascinante qualidade adicional de que não se precisa ser
usuário para gozar de seus milagres, podendo-se mesmo senti-los
concretos, palpáveis.
Tanto se sabe das razões do silicone para introduzir-se em variados lugares quanto não se sabe
das razões dos bicheiros para introduzir seu dinheiro no desfile.
Certo é que essa dedicação esquisita é uma das criações dos tempos da ditadura que sobrevivem
muito bem na meia democracia.
O que não sobreviveu na escola
de samba foi o samba de escola,
contaminado desde aquela época, aliás muito apropriadamente,
por uma infiltração do ritmo de
marcha, tão mais próxima do
gosto militar do que o samba. Se
ainda fosse a marchinha, brejeira
e sapeca, o samba não ficaria
ofendido.
Se o samba de escola não sobreviveu é porque a escola de samba
deixou de ser escola. Influência
do MEC, talvez. Hoje é empreendimento. E povo em empreendimento está sempre por baixo. Povo, mesmo, nos desfiles apenas
faz número, dá a conveniente
idéia de dimensão. E como, no
fundo, todos os anos trazem desfiles iguais, as apelações se tornaram o principal objetivo para
tentar um mínimo de diferença.
Mais nomes de fama que querem
mais fama. Mais belezas de silicone que se valem do desfile como aquelas que se expõem nas vitrines de famosa rua de Hamburgo, em um "quem dá mais" de
duplo sentido, que tanto se aplica
aos possíveis pagadores como às
que querem receber.
O dinheiro em massa e o silicone idem deram ao desfile a projeção enganosa de que ali, e só ali,
estava o Carnaval. A afinidade
entre Sambódromo e TV fez o cenário perfeito para o engano.
A conclusão foi geral: o Carnaval de rua morreu. Ou, com mesma veracidade e mais simplicidade, o Carnaval morreu. Os bailes notáveis, dos Artistas, do Glória, do Copa, do Municipal, sem
falar nos vale-tudo, sumiram de
uma vez só. As avenidas e praças
ficaram com cara de feriado, não
de Carnaval. Os bondes, que espalhavam o Carnaval por toda a
cidade, já estavam levados por
Lacerda. Músicas de Carnaval? O
rock, o pop e que tais não davam
brecha, com a força do suborno
de programadores de rádio, o
sempre recriminado e nunca reprimido jabá. O Carnaval morreu.
Não sei de onde vem, nem o que
é, mas uma energia muito especial ou uma necessidade indefinível faz brotar Carnaval outra vez
pela cidade toda. De uns poucos
anos para cá, blocos incontáveis
surgiram não se sabe de quê, cresceram e se multiplicaram, inundam ruas, praças, avenidas e, sobretudo, almas. TV, jornais e revistas só têm olhos -sempre-
para Ipanema, Leblon, para a zona sul. Os seus blocos, quase todos muito divertidos, é que ganham reportagem. Mas onde o Carnaval se refaz, ou não seria Carnaval, é no povão. Aquele que inventou a escola de samba e o desfile.
O Carnaval estava morto, mas o
carnavalesco, não. E talvez haja aí,
haja na recriação espontânea do
Carnaval a partir das suas raízes de
povão, apesar de todas as circunstâncias contrárias, um significado
instintivo ou uma mensagem popular que não restringe o seu sentido
ao Carnaval.
Tanto faz olharmos para os campos ou para as cidades, parece que o
ressurgir do Carnaval diz alguma
coisa a respeito do que neles se passa de menos alegre.
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