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CRIME ORGANIZADO
Escutas telefônicas revelam negociação de compra de decisões judiciárias; ministro do STF e seu filho são citados
PF investiga elo entre quadrilha e juiz
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A Polícia Federal investiga há
três semanas um esquema de "negociação de decisões" no STJ (Superior Tribunal de Justiça). A
ação nasceu de uma escuta telefônica autorizada pela Justiça. A escuta pôs sob suspeita o advogado
Erick José Travassos Vidigal, 28. É
filho do ministro Edson Vidigal,
vice-presidente do STJ.
A investigação foi apelidada de
"Operação Dilúvio". A Folha obteve cópias de documentos secretos e de fitas com conversas captadas pelo grampo.
O material foi produzido pela
superintendência da PF em Mato
Grosso. As cifras mencionadas
vão de US$ 100 mil (preço de um
habeas corpus) a R$ 2 milhões
(valor de um contrato de "assessoramento" nos tribunais superiores de Brasília).
O grampo que conduziu a polícia ao filho do ministro Vidigal foi
feito sob supervisão judicial. Começou nos últimos dias de janeiro, no município mato-grossense
de Rondonópolis. A apuração
não visava o Judiciário.
Para surpresa dos agentes federais, a escuta telefônica captou referências a um personagem que
desconheciam. Era tratado nos
diálogos ora como "Erick", ora
como "filho do velho". No curso
das investigações, a PF descobriu
que se tratava do filho do ministro
Edson Vidigal.
Investigava-se uma das mais vigorosas quadrilhas criminosas
em funcionamento no país. Opera, desde Mato Grosso, sob o comando de um ex-policial civil:
João Arcanjo Ribeiro. É conhecido como "comendador".
Arcanjo Ribeiro está foragido. É
caçado dentro e fora do país, em
megaoperação que mobiliza a PF,
a Interpol e até o FBI norte-americano. Pesam contra ele acusações
variadas -da exploração de máquinas caça-níqueis à encomenda
de assassinatos, do comércio ilegal de armas ao tráfico de diamantes, da sonegação de impostos à lavagem de dinheiro.
Ele é acusado do assassinato do
empresário Sávio Brandão, 40,
dono do jornal "Folha do Estado", o segundo maior de Mato
Grosso, morto a tiros em frente a
sua empresa em setembro.
Grampeou-se, primeiro, um lobista chamado Samuel Nascimento da Silva. Mora em São José
do Rio Preto (SP). Viaja com frequência a Cuiabá (MT). Presta
serviços à rede de advogados mobilizada em torno do "comendador". O telefone grampeado é um
celular do tipo pré-pago.
Habeas corpus
A partir de 20 de janeiro, o dono
do aparelho pôs-se a disparar e
receber telefonemas de Brasília.
Ouvindo os diálogos de Samuel,
os agentes federais perceberam
que giravam em torno da negociação de habeas corpus. É um tipo de decisão judicial que serve
para liberar presos ou pessoas
ameaçadas de prisão. Os beneficiários seriam o fugitivo Arcanjo
Ribeiro e integrantes de sua quadrilha, sete dos quais trancafiados
em cárceres de Mato Grosso.
Nas gravações, o nome de Erick
Vidigal é mencionado como elo
entre a quadrilha e o gabinete de
seu pai. Nem a voz de Erick nem a
do pai aparecem nas fitas. Ambos
são, porém, mencionados à farta.
Uma das conversas envolvia a
concessão de habeas corpus para
libertar Luiz Alberto Dondo Gonçalves. Foi ao cárcere sob a acusação de ter atuado como contador
dos negócios escusos do "comendador" Arcanjo. O caso repousava sobre a mesa do ministro Edson Vidigal. Como vice-presidente do tribunal, ele integra a chamada "corte especial", um colegiado de 21 juízes, entre dirigentes
da Casa e ministros mais antigos.
Mas era janeiro. O Judiciário estava em recesso. De plantão, Vidigal ocupava-se dos casos urgentes. Entre eles o pedido de liminar
em favor de Dondo Gonçalves.
Na troca de telefonemas interceptada pela Polícia Federal, a
quadrilha do "comendador" Arcanjo mostra-se disposta a pagar
US$ 100 mil por uma decisão simpática de Vidigal.
Negócio supostamente acertado com Erick Vidigal. Em 22 de
janeiro de 2003, porém, o ministro Vidigal indeferiu o pedido.
A quadrilha foi informada em
primeira mão. "O Erick tá vindo
aqui. É o Erick, o filho do velho lá,
entendeu? Ele tá vindo trazer a cópia [do despacho" aqui", diz um
dos prepostos da quadrilha mato-grossense, falando de Brasília.
De acordo com o conteúdo da
escuta, o ministro teria mandado
um recado pelo filho: da forma
como fora pedida, a libertação do
preso iria ferir jurisprudência do
STF (Supremo Tribunal Federal).
Soaria inexplicável.
Pedido semelhante havia sido
feito ao TRF (Tribunal Regional
Federal), instância judicial que
antecede o STJ. O TRF negara a liminar, postergando a análise do
mérito. Só depois de um julgamento final no Tribunal Regional
é que o pedido de nova liminar
poderia ser protocolado no STJ.
Erick Vidigal passa a negociar
com a quadrilha, conforme os registros da escuta, um pacote de
assessoramento "mais amplo".
"[...] Aí ele [Erick] quer dois milhões", registra um trecho do
grampo. "Dá um, deixa um armazenado aqui, depositado num cofre aqui, do Banco do Brasil, e na
segunda-feira vem, pega e paga o
restante. E depois o restante vai
pagando conforme o serviço que
vai sendo prestado. E aí faz um
contrato de assessoria nos tribunais superiores em Brasília, de tudo o que chegar aqui [...]."
Como não há menção à unidade
monetária, a PF não sabe se a cifra
foi expressa em reais ou em dólares. Um dos beneficiários da transação seria o próprio Arcanjo Ribeiro, chamado nas gravações pelo codinome de "passarinho".
Uma referência ao símbolo das
empresas que o "comendador"
do crime mantém em Mato Grosso e na Flórida (EUA): um colibri.
Ouve-se no grampo: "[...] Então
a do passarinho é o seguinte: ele
precisa entregar, falar pro advogado aqui pra entregar a peça pra
ele [Erick] analisar [...]. Manda ele
entregar em disquete amanhã, o
mais tardar. Protocola na sexta-feira e ele concede na segunda o
do grande".
Anote-se, em benefício de Edson Vidigal, que não há indícios
de que a assinatura do juiz tenha
sido aposta a decisões judiciais remuneradas pela quadrilha de Arcanjo Ribeiro. Trechos das gravações apontam desavenças em torno de valores supostamente cobrados. Os prepostos do "comendador", tudo indica, regatearam o preço.
Viagem à Cuiabá
Um detalhe complica a situação
dos Vidigal. Guiando-se pelas
gravações, os agentes federais farejaram a passagem de Erick por
Cuiabá. Deu-se entre a noite do
dia 22 e a madrugada de 23 de janeiro. O filho do ministro Vidigal
participou de reunião com lobistas e advogados do bandido Arcanjo Ribeiro. Conversaram madrugada adentro.
O envolvimento de Erick Vidigal com representantes do crime
organizado joga gasolina numa
fogueira que arde em Brasília desde o final do ano passado. O fogaréu da crescente infiltração de criminosos no aparelho do Estado.
Até aqui, o caso mais notório
envolvia o deputado federal Pinheiro Landim (CE). Foi pilhado
em outro grampo da Polícia Federal. Conversou diretamente com
traficantes de cocaína. Encontrou-se com eles.
Landim atuava, segundo a PF,
no comércio de decisões judiciais.
Servia-se da assessoria de Igor
Santos da Silveira. Como Erick
Vidigal, é filho de um magistrado,
o desembargador Eustáquio Silveira, do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), afastado
do tribunal na última quinta-feira. O TRF abriu inquérito administrativo para apurar o envolvimento de Eustáquio e de sua mulher, a juíza federal Vera Carla Silveira, na venda habeas corpus para narcotraficantes.
De resto, as fitas que ameaçam o
mandato de Landim enredaram
um outro ministro, colega de Edson Vidigal no STJ. Chama-se Vicente Leal. É protagonista de uma
sindicância aberta no tribunal,
ainda inconclusa. Antes da proclamação dos resultados, o STJ
vê-se na contingência de abrir nova apuração interna.
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